01 março 2013

Kon Tiki


 
Quando era criança, eu tinha a curiosidade de saber que tipo de livros meu pai lia, pois ele era um apaixonado por livros, que comprava geralmente em sebos, onde encontrava autênticas preciosidades. Eu ainda não conhecia essa história de “objeto primário do amor”, mas tinha consciência de minha admiração por ele. Ele não era um homem letrado, no sentido pernóstico da palavra, mas um self-made man, que aprendera francês utilizando três elementos básicos: um livro escrito obviamente em francês, um dicionário e uma gramática francesa. Simples, não é?
Dele sempre me lembro sentado numa poltrona, com um livro ou uma caneta na mão, ou dedilhando sobre a mesa a métrica de algum poema em fase de elaboração. Depois passou para a máquina de escrever, que ele tricotava, como dizia, utilizando-se, com rapidez, de apenas um dedo de cada mão. Daquela Royal, modelo 1938, saíram muitos livros, alguns deles não só publicados como premiados.
Quis o destino que ele viesse a falecer justamente depois de haver feito aquilo que mais gostava de fazer: discursar sobre suas leituras, transmitindo, com sua voz tonitruante e entusiasmo, aos ouvintes a emoção que sentira quando da leitura que fizera. Falara sobre Petrarca, o notável poeta italiano, e, certamente, sua musa, Laura, um amor platônico, como tantas loucas paixões dos poetas, que pretendem transformar suas musas em pessoas de carne e osso. O que geralmente acaba em tragédia.
Meu pai teve uma morte tranquila. Morte feliz para ele e muito difícil para nós, que levamos muito tempo para nos acostumarmos com sua ausência definitiva, até porque o esperávamos para celebrarmos - o que é a ironia do destino! - o Dia dos Pais, em cuja véspera deu-se seu passamento. A cada dia depois disso era como se ele estivesse para chegar da viagem que fizera para participar de um congresso de escritores, onde a morte o recolheu. Íamos até a porta, e nada! Até que sua imagem foi sendo levada cada vez para mais fundo da memória e ali ficou, pendurada na parede do panteão que dentro de cada um de nós homenageia os nossos mortos ilustres. E cujo pó nós vamos tirando com a lembrança constante de sua imagem tão cara. Ele, que havia falado sobre poesia e recitado com sua bela voz aquilo sobre que falava, se emocionou certamente como das demais vezes em que falara em público. Ali, porém, por algum motivo especial, a emoção foi mais forte e o coração dele não suportou. Morreu como tanta gente gostaria de morrer: praticamente depois de um orgasmo, como Raffaelo Sanzio, ainda que o do meu pai fosse meramente intelectual. Um prazer parúsico, uma visão beatífica de Deus, certamente.
Retorno às estantes de sua variada biblioteca. Os livros do Tarzan me levavam, como a tantos outros jovens, para uma África onde o Edgar Rice Burroughs jamais havia estado. Ou saberia que aquelas árvores imensas, dignas de uma floresta amazônica, só existiam em sua imaginação de escritor, sempre perdoado, como todos os que escrevemos, por nosso direito à chamada “licença poética”, que não se aplica apenas à poesia, é claro. O campeão olímpico Johnny Weissmuller e seu inesquecível grito (mais tarde, para minha decepção, uma dentre tantas que o conhecimento acaba nos impondo, vim a saber que era uma construção de laboratório, que mesclava três ou quatro sons diferentes) completava nossa fértil imaginação. Não tínhamos ainda malícia suficiente para perceber que as lutas dele contra os crocodilos esparramavam tanta água para que não percebêssemos que os animais eram, na verdade, feitos de borracha. O DVD está aí para confirmar esse primarismo de “efeito especial”, que lograva nos enganar.
Aliás, uma das brincadeiras prediletas de nossa turma de jovens era um singular jogo de pega-pega. Alguém, devidamente sorteado, deveria contar até dez e, depois disso, alcançar um de nós que, obrigatoriamente, nos “escondíamos” no cimo de uma árvore de um limitado bosque nas proximidades de nossas casas. Como as árvores eram próximas umas das outras, à medida que subíamos, o galho vergava com o peso e passávamos de uma árvore para outra, no melhor estilo do Tarzan. Vez ou outra um de nós despencava lá do alto e vinha-se agarrando nos galhos inferiores, para impedir a queda ou amainar os efeitos dela, quando ela era inevitável. Não era raro um de nós ficar deitado algum tempo no chão, tentando superar os efeitos da inevitável queda.
Outros livros me chamavam a atenção na estante de meu pai. Como muitos eram escritos em francês, ficava no garoto aquele assombro por ter em casa alguém que tinha acesso a um mundo fantástico a que eu ainda não tinha condições de ir. Muitos deles falavam da Índia e seus mistérios, pois meu pai era chegado ao budismo. Chamavam-me a atenção as ilustrações que, embora ainda em preto-e-branco, mostravam aqueles deuses incríveis, cujas histórias ele pacientemente me contava. Shiva e Shatki, o homem em sua dualidade, cujos nomes, evidentemente, não guardei na ocasião, mas fui aprender já adulto, quando entendi ser indispensável a alguém minimamente culto o conhecimento da sabedoria que o Oriente teima em nos transmitir, por mais que sejamos impermeáveis a essa milenar cultura.
Dentre os outros livros, interessei-me por um de nome estranho, que eu supus se referisse a algum deus hindu ou ao nome de algum lugar onde se passaria alguma das inúmeras aventuras de Tarzan: Kon Tiki. Que diabos seria aquilo? Li e me convenci de que o autor era tão imaginoso como o Edgar Rice Bourroughs, pois atravessar o Pacífico em uma autêntica casca de noz era algo tão impensável como o homem pisar na Lua. Algo absolutamente impossível de ser concretizado. Coisas de um Júlio Verne, que ali também estava contemplado, com sua Volta ao Mundo em 80 Dias e, mais atraente por seu conteúdo, A Guerra dos Mundos, livros que me faziam viajar com meu foguete imaginário, como costumava fazer outros heróis daqueles tempos, o Buck Rogers e o Flash Gordon.
Tendo vivido algum tempo na Noruega, aproveitava o tempo livre em Oslo para o prazer de passear pelos museus do Bygdøy, num dos quais está precisamente a réplica da incrível embarcação. Se em condições normais eu já teria minha curiosidade despertada, graças àqueles antecedentes que guardei na cabeça, fui ali lendo tudo o que era possível ler, vendo fotografia por fotografia que registram a extraordinária aventura, esgotando o material de cada parede do museu com avidez. E o filme feito na ocasião por algum cinematografista amador, cuja coragem, também digna de todo louvor, é impressionante. 
A balsa Kon Tiki foi construída como uma cópia de um barco pré-histórico, fico ali sabendo. Feita com nove troncos de madeira leve, uma tripulação de apenas seis pessoas embarcou nela em 28 de abril de 1947, em Callao, no Peru, chegando à Polinésia depois de 100 dias. Thor Heyerdahl também construiu uma réplica de uma embarcação egípcia, em 1969, que, saindo do Marrocos, percorreu cerca de 3.000 milhas até chegar a Barbados. Construiu mais tarde outra embarcação semelhante, com a qual percorreu 4.000 milhas em 57 dias, fazendo o mesmo curso, demonstrando, assim, ser possível que as civilizações do Velho Mundo tivessem tido contato com o ainda não descoberto Novo Mundo.
E vejo por toda parte o rosto do extraordinário navegador Thor Heyerdahl, desde a juventude até a idade avançada, sempre sorridente, de bem com a vida, que ele amou mais do que tudo.  Um antropólogo que não ficou no gabinete, mas foi a campo fazer suas experiências concretas, como ao visitar a ilha de Páscoa e trazer para a Noruega alguns daqueles bonecões de pedra enormes, que, por sinal, também estão no museu.
Ao fim da visita, chega-se a um mini auditório, onde alguém dá uma palestra a jovens universitários. Mistura frases em inglês com outras em norueguês. É um homem magro, alto, cabelos grisalhos. E tem o mesmíssimo rosto do navegador. Mas é simplesmente impensável que, nascido em 1914, ainda esteja vivo e com tamanha lucidez.
Em 1947, com pouco mais de 30 anos portanto, o notável antropólogo norueguês se dispôs a explorar, com o mesmo material por eles antes utilizado, a rota que teria sido observada pelos incas, que, saindo do Peru, cruzaram o Oceano Pacífico. A distância física entre a Costa do Peru e as ilhas Tuamotu é de cerca de 4.000 milhas, mas os incas teriam descoberto que, explorando adequadamente as correntes marítimas, essa distância poderia ser feita em menor tempo, correspondente a 1.000 milhas físicas.
O barco, construído com o auxílio dos nativos, utilizando talos de papiro, tinha cerca de 15 metros de comprimento por 6 metros de largura. Era uma autêntica jangada, impulsionada por uma vela quadrada. E como não afundou? O segredo dos incas estava justamente nisso: não era um barco para enfrentar as águas, mas um objeto para ser levado por ela, a seu bel prazer. Logo, escolhendo adequadamente a corrente marítima, era só deixar-se levar, rendendo-se às forças da natureza, que se chegaria ao destino.
Algo muito próprio do espírito de um norueguês. Realmente, enquanto em outros países as pessoas “questionam” os fatos naturais, até mesmo quando qualificam o tempo de “bom” e “mau”, como se a natureza estivesse sujeita a avaliação ética (“piove, governo ladro!”, como se diz em algum lugar da Europa), na Noruega convive-se com a natureza, aceitando o que ela nos traz.
Chuva e frio não impedem que as mães saiam às ruas com crianças de poucos meses, mesmo porque é em tal ambiente que elas viverão. Assim, deixá-las na calçada enquanto a mãe entra na loja para fazer compra, em pleno inverno, é das coisas mais comuns na Noruega. Diz-se que uma delas, quando fez isso em outro país, foi chamada ao distrito policial, onde queriam processá-la por haver abandonado o filho à própria sorte.
Como autênticas bonecas, elas ali ficam, com o corpo todo agasalhado e apenas os olhos, o nariz e as bochechas vermelhas de fora. E a boquinha aberta, com a qual elas vão recolhendo, quando calha, a garoa ou a neve que lhe cai no rosto. Nada a admirar, portanto, na escolha feita pelo viking do século XX, que trazia na alma a tradição que lhe foi transmitida por seus antepassados.
Consta que quando Francisco Pizarro, considerado o desbravador do Oceano Pacífico, vinha do Panamá para o leste, por volta de 1526, encontrou no caminho embarcações feitas de madeira leve, com cerca de 20 peruanos remando. O segredo dessas embarcações é que, além de feitas com madeira que não afundava, não tinham como reter água, que retornava naturalmente ao mar pelas brechas deixadas ao amarrar o material utilizado em sua confecção, pois ainda não haviam imaginado aquilo que a prof. Maria Helena Rolim, especialista em Direito do Mar, tanto conhece: a ballast water, ou água de lastro.
Isso impressionou tanto o navegador espanhol que ele recolheu vários dos nativos para ensinarem a seus homens a técnica de confecção daquele tipo de embarcação.
Pois nosso bravo Thor Heyerdhal resolveu explorar a mesma técnica, o que fez com sucesso, como se vê do material constante do museu, cujo logotipo é internacionalmente conhecido.
Terminada a exposição, fomos cumprimentar o expositor, que, de fato, se chama Thor Heyerdhal, nome que carrega com muito orgulho e ao qual o pai acrescentou um Júnior. É também pesquisador e nos deu várias indicações a respeito do tema que há tanto tempo ocupa a família Heyerdhal. Além de um livro autografado.
Seu pai, em verdade, faleceu em 2002, segundo nos conta o orgulhoso filho, reconhecendo que, de fato, se parece muito com o extraordinário navegador, o que, compreensivelmente, o enche de orgulho ainda maior do que o que já lhe traz o nome. E que me acrescenta que os objetos que ali se encontram não são réplicas, como eu imaginara, mas os originais utilizados na famosa viagem.
Uma autêntica viagem no tempo!
Voltei para o hotel imaginando como se sentiria meu pai se passasse pela experiência por que acabo de passar. Não creio que seu coração tivesse suportado.

 

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