15 fevereiro 2013

Papas


Papas e Papas[1]

 
“Sim. Sou membro da Opus Dei, a obra inacabada de Deus, que devemos ajudar a acabar. Não sei o que o senhor pensa dela, mas ela tem sido denegrida por pessoas que não conhecem seus meandros. Como dizemos na Espanha, pessoas que não sabem da missa nem o começo. Esse Code Da Vinci, por exemplo, é um amontoado de mentiras, um emaranhado no qual o próprio autor acabou por enredar-se”, continuou o recém-chegado, sempre ouvido com atenção pelo professor de Salamanca, que não podia imaginar aonde iria chegar aquilo. “E ainda acabam de fazer um filme repetindo a mesma ladainha. Que desserviço à cultura, Senhor!”

“Realmente, eu, que não sou ligado à Opus Dei, também não me impressionei com o livro. Tudo o que ele nos mostra é que em todas organizações há pessoas sem escrúpulos. Ora, para dizer isso não precisaria escrever um livro daqueles, bastava reproduzir a vida de Aurélio Agostinho, um pecador como poucos”, anotou Milor.

“Aurélio Agostinho?”, indagou o outro, que, pelo jeito, pouco conhecia de sua querida Igreja.

“Sim, esse mesmo. Depois de frequentar prostíbulos, converteu-se ao cristianismo aos 33 anos, tornando-se mais tarde um dos doutores da Igreja. Nosso prezado Santo Agostinho, que, ao ser ordenado, já era pai de um garoto, a quem dera o apropriado nome de Adeodato. Entregue a Deus, veja como são as coisas.”

“Mas o Bispo de Hipona arrependeu-se e entregou tudo o que tinha aos pobres”, observou o outro.

“Realmente, assim foi. O problema do ser humano não é o pecado, mas o difícil arrependimento sincero. Fosse para se fazer escândalo, era contar a história do Papa Bórgia”, provocou o professor de Salamanca.

“Desculpe, professor, mas até onde sei, não houve nenhum Papa Bórgia”, ressalvou Juan Tenório.

“Meu caro patrício, penso que lhe devo algumas informações a respeito. Faço-o com todo respeito, pois não confundo a floresta com cada árvore que a compõe. O chamado Papa Bórgia, nome maldoso pelo qual é conhecido pelos não-católicos, foi Alexandre VI, uma figura digna de um romance de William Shakespeare. Ou de um livro de Mário Puzzo, filmado pelo Francis Coppola. Eu até diria que a Máfia foi inspirada na famiglia dos Bórgia e não nos nobres de Nápoles que não aceitavam a Casa de Bourbon”, acrescentou.

“Eu, pelo menos, jamais soube qual seria a origem da Máfia. Essa da Casa de Bourbon para mim é novidade”, ressalvou o outro.

“Pelo menos é o que dizem. Os napolitanos, descontentes com os franceses, gritavam na rua: “Morte ala Francia Italia anela!”, ou seja, “Morte à França a Itália deseja! M.A.F.I.A.” Como diria minha mulher, si non è vero, è bene trovato.”

O outro fez suas ressalvas. “Difícil imaginar que de uma desavença entre dois países tenha surgido uma sociedade secreta sangrenta, que jamais teve qualquer preocupação política. Digo política no bom sentido, pois sei muito bem que muitos homens importantes da Itália deveram e devem seu posto à Cosa Nostra”, completou Juan Tenório. “Mas me interessou mesmo a sua referência à família Bórgia. Eu pouco sei a respeito disso”.

“É uma história que serve para nos deixar mais humildes. Rodrigo Bórgia foi o grande representante da família, pois, sendo sobrinho do Papa Calisto III, cismou de ser papa também”, começou o professor Milor.

“Mas nós sabemos que não basta cismar de ser papa para sê-lo. É o Espírito Santo que inspira os membros do colégio episcopal, segundo cremos”, observou Tenório. “E o que ocorre no Conclave é mantido em segredo por todos os que dele participaram”.

“Com todo respeito, eu lembrarei que a palavra conclave vem de cum clave, pois, quando da eleição de certo papa, que viria a chamar-se Clemente IV, a escolha estava demorando tanto, com despesas enormes para os cofres do Vaticano, que o ecônomo trancou a porta por fora, não permitindo que se levasse o que comer e o que beber aos eleitores, apressando, assim, a baixa do Espírito Santo. Cum clave! Com chave”.

Ambos deram boa risada com o modo como a história foi narrada. O garçon trouxe-lhes mais bebida, e a conversa prosseguiu, animada.

“Pois o nosso Rodrigo deve ter feito algum acordo com o Santo Espírito, graças ao qual foi papa durante 10 anos. Seu papado foi algo simplesmente inimaginável, um autêntico paradigma da corrupção, o que mais tarde iria ser o motivo da separação dos católicos que protestavam contra esses e outros abusos, criando-se as igrejas protestantes. Alexandre VI foi historicamente um papa corrupto e pouco dado às virtudes cristãs. Teve diversas amantes e pelo menos sete filhos, entre os quais César e Lucrécia, a famosa cortesã Lucrécia Bórgia, cujo nome é sinônimo de luxúria. Para conseguir uma aliança política com a França, Alexandre VI teria de se desligar de seus amigos napolitanos. E o papa se encontrava em situação difícil, já que tinha casado dois de seus filhos, Lucrécia e Geofredo, com bastardos do rei de Nápoles. Para provar sua fidelidade, porem, Alexandre concordou em assassinar o marido de sua filha, o que, de fato, foi feito. Em relação a sua nora Sancha de Nápoles, a esposa de seu filho Geofredo, porém, ele preferiu mandar aprisioná-la. Ali, Sancha foi submetida a tal violência física e sexual que um ano depois, quando o papa morreu e ela pode ser libertada, já estava completamente louca, morrendo um ano depois. Tudo isso ad magnam gloriam Dei, meu caro Tenório”.

Juán Tenório ouvia aquelas narrativas escabrosas com um ar de sincera repugnância. “A sorte da Igreja é que o Espírito Santo jamais a abandona. Se dependesse dos padres e dos bispos...”, suspirou ele.

Nós, espanhóis, aliás, temos alguma coisa a ver com esse papa, meu caro Tenório. Em maio de 1493, o Papa Alexandre VI, que era de origem espanhola, decretou pela bula Inter cætera que as novas terras descobertas situadas a oeste de um meridiano a 100 léguas das ilhas do Cabo Verde pertenceriam à Espanha, e as terras a leste desse meridiano perteceriam a Portugal. Ou seja, as terras para a Espanha e as águas para os portugueses”, brincou o professor Milor. “Não é a toa que a América do Sul quase toda fala espanhol. Ou um arremedo de espanhol, para ser exato”.

“Mas, se bem me lembro, o Tratado de Tordesilhas é de 1494”, ressalvou Juan Tenório.

“Efetivamente. Aliás, foram várias reuniões entre os representantes dos dois países, já que Portugal se recusava a acatar a bula papal, cuja parcialidade era flagrante. Finalmente, na cidade de Tordesillas, em Castela, foi assinado o tratado definitivo”, aditou o professor.

“Que os portugueses jamais obedeceram, avançando para o oeste e quase chegando ao Oceano Pacífico”, disse o outro. “Não fosse a floresta amazônica...”

“Mas preciso concluir a história do nosso patrício D. Rodrigo Bórgia. Não contente em ser papa e pai de uma respeitável ninhada, resolveu que um dos filhos seria seu sucessor. César Bórgia, com apenas 16 anos foi nomeado bispo, mesmo porque ninguém é obrigado a passar pelo seminário para ser bispo, como sabemos”, observou o professor espanhol.

“Mas aos 16 anos! Isso é digno de um Guiness Book!”, desabafou o outro.

“Pois saiba que aos 18 anos César Bórgia já era cardeal! Claro que dentro de pouco tempo, não havendo mais promoção à vista, ele se entediou da vida monástica e renunciou aos poderes eclesiásticos, para ser feito duque pelo rei Luís XII, com a finalidade de agradar o papa, que era o pai do jovem precoce, como vimos. Tantas fez esse César Bórgia que inspirou Nicoló Machiavelo a escrever sua obra mais conhecida, Il Principe. Eis, meu caro amigo, aonde chegou o descuido do Espírito Santo”, concluiu Milor, pondo em suas palavras um tom irônico que não era muito habitual nele.

“Pois saiba, meu caro professor, que isso, longe de diminuir minha fé, a incrementa. Como dizia São Paulo, bendito o pecado que nos fez merecer tão excelso Salvador! Imagine que monotonia seria a vida sem pecado.” E, baixando a voz: “E é justamente por causa do pecado que venho à sua procura.”



[1] Do livro Crimes numa Casca de Noz, ainda inédito

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