"A vereança
de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de
não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma
alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha
defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão
Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara
para agasalhar e tratar no edifício que iria construir todos os loucos de
Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe
daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a
curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que
dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter
os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de
demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
-
Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu
marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é
bom, vira o juízo.
D.
Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe que estava com
desejos, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele
lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara
sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe
sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a
proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo
ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não
foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos,
assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem
quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à
Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas
decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura." -
Machado de Assis, "O Alienista"
O Machado foi-se, mas
deixou-nos sua afiada ironia. Relendo a narrativa sobre a benemérita obra do
doutor Simão Bacamarte e sua casa amarela, ocorreu-me falar sobre um personagem
raro, que não sei se ficaria dentro ou fora dela. Ele era jurista,
especializado, evidentemente, em anatocismo, coisa que fazia com a mais
absoluta correção. Vivia brigando com a esposa, que era médica. Eram, já se vê,
litisconsortes ativos, sendo ela facultativa.
Certo dia ele recebeu uma carta
de um amigo rogando-lhe que estivesse no dia tal, tantas horas, em tal lugar,
sem falta. Atendendo ao contido na carta rogatória, foi ao tal local, onde
encontrou a esposa em companhia de um técnico de televisão, que ficava o tempo
todo de olho na tela. O amante dela, concluiu ele, era um assistente técnico,
que precisava tratar do canal do dente. Agravado em sua honra e perdendo o
domínio de si, incapaz de gerir sua pessoa e bens, pegou de uma vara de marmelo
e desferiu golpes e mais golpes no adversário com aquele instrumento retido em
suas mãos, o que fez dela uma vara criminal.
O estado de saúde da mulher,
que já era tão precário como a posse da vara nas mãos dele, agravou-se. Tanto
pior para ela, que tinha poucas posses e apelou para a ignorância,
encomendando, recurso extraordinário, um despacho num centro da periferia.
Fugindo ele, populares foram
buscá-lo e o apreenderam. Se havia um corréu, não foi visto, visto que correu.
Eis uma busca e apreensão de alguém bem móvel. Não foi fácil, porque o oficial
de Justiça que foi mandado ao local era mudo e não sabia como daria voz de
prisão ao suspeito, além de não haver citação do endereço do procurado. Seu
irmão, que também era oficial, mas do Exército da Salvação, prontificou-se a
ajudá-lo a prender o homem que deveria ser condenado. Ele era um homem culto e,
por isso, não lhe foi difícil dar cumprimento ao mandado, que não era longo.
O homem não tinha salvação.
Levado a julgamento, o acusado, que era uma figura sinistra, jurou inocência,
com a mão direita sobre a Bíblia, pois estava fora de seu juízo. Aquilo deveria
ser algum erro de pessoa, justificou-se. "Não júri em falso!"
aconselhou o seu advogado, homem mais prudente do que creme dentifrício. A
vítima tornara-se assistente do promotor e não perdia uma apresentação dele,
excelente pianista. Um dia, batendo palmas, ela torceu o pulso, mas o promotor,
que também era curador, deu um jeito naquilo e ela ficou boa, completamente
curada. Cura tão perfeita que nenhum procurador do Estado descobriria onde se
encontrava a cicatriz. Talvez em Lins, que é o nome abreviado da cidade de
Lugar Incerto e Não Sabido, onde, como sabemos, nasceu o escritor Mário Prata,
que atualmente se homizia, com todo o ouro obtido na venda de seus livros, em
Santa Catarina, em companhia da esposa, que ali se mulherzia.
O réu foi condenado a pelar um
pacto em dia de ventania e, sem embargo disso, colher-lhe as penas. Disse o
juiz: "Leve-as ao promotor, o doutor Sansão", homem conhecedor de
todas as penas, que só a muitos custos concordaria com a liberação do
condenado. Eis uma pena que certamente não lhe seria leve.
Mesmo depois de cumprida a
longa sanção, ele quase não saía de casa, seu amado bem de família, pois aquela
reclusão, por tantos anos, acabou por acarretar-lhe prisão de ventre. Como não
falasse coisa móvel com coisa móvel, foi internado no manicômio judiciário,
onde, fã do Nadal, vivia jogando tênis em quem o visitasse.
Era louco por jogo. Sempre que
chegava o homem do correio, jogavam carta. Quando era levado ao fórum,
equilibrava-se no corrimão da escada, pois era um perito judicial. Seu
companheiro Antonio Cabecel se candidatou a um cargo eletivo e ele participou
ativamente da eleição de Cabecel, que venceu por um voto, dado por Minerva, sua
esposa, portuguesinha muito severa, que saíra de Lisboa por causa do enfado.
Quando solteiro ele não saía do
bar, frequentado, naturalmente, só por advogados norte-americanos. Depois,
passou a frequentar a venda da esquina, ponto de jogo do bicho e de possíveis
clientes. Sua mulher, no entanto, reprovava tal conduta, pois detestava
animais. "Temes Minerva, homem?" indagavam os amigos. "É claro
que sim", respondia ele. "Ela não tira os olhos da venda."
Um dia, porém, ele caiu no
conto do vigário, que não havia sido escrito pela pena dourada do Mário, e
ficou imóvel no solo, carecedor de ação.
O único processo de julgar o
extinto foi julgar extinto o processo.