07 novembro 2013

E por que não?


“O deputado federal Paulo Maluf foi condenado nesta segunda-feira (4) no Tribunal de Justiça de São Paulo a pagar uma multa de R$ 42,3 milhões por desvios que ocorreram na construção do túnel Ayrton Senna, entregue à população em 1995.” Dos jornais desta semana
“O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decide nesta semana se abre processo disciplinar contra o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Mário Alberto Simões Hirs, e sua antecessora, Telma Laura Silva Britto, acusados de irregularidades que teriam causado prejuízo de R$ 448 milhões aos cofres do Estado.” Dos jornais desta semana

Leio praticamente todos os dias nos jornais que foi realizado ontem aqui, hoje mais ali, um rombo nas contas públicas que rendeu aos autores milhões de reais. Fico imaginando o que eu faria se as minhas condições de saúde me permitissem. Entraria, certamente, numa dessas, acertaria a vida de meus netos, seguindo o manual do Maluf (“Desafio provarem que existe alguma conta em meu nome em algum banco estrangeiro”) e, graças ao nosso Supremo, se algum dia houver alguma condenação definitiva contra mim, minha família entregaria ao juiz de execução um frasco com minhas cinzas. E que faça bom proveito.
Quando transmito essas idéias a alguns amigos e colegas, tão sobreviventes de outros tempos quanto eu, eles fazem uma cara de horror. “E a moral, meu caro? Para que serve a Ética?”
Acabo de ler dois livros muito ilustrativos: são as biografias de Henrique VIII e de sua filha Elizabeth I, a tal que se apelidou “Virgin Queen”, na certa porque não haveria, como jamais houve, quem lá fosse conferir se essa virgindade era real e depois saísse à rua denunciando o engodo. Virgem e namoradeira como ela só. Tudo muito platônico, certamente.
Muito embora a Magna Carta Libertatum, que é de 1.215, impusesse aos soberanos ingleses a obediência ao “devido processo legal” quando se cuidasse de julgar e executar pessoas, nem o rei, que governou de 1.509 a 1.547, quanto ela, sua filha, que ficou mais tempo do que ele no trono, deixavam de enviar para o cepo (nobres não eram enforcados, como ocorria com a gente comum) inúmeros inimigos tão só pela acusação de traição, mesmo quando o plano nem chegava a esboçar-se. Inimigos? Além de duas de suas esposas (Ana Bolena e Catarina Howard), aquele rei mandou decepar a cabeça de seus auxiliares diretos como aquele que todos consideravam seu melhor amigo, Thomas More, homem cultíssimo e de moral ilibada, como se diz em Brasília, e que hoje é conhecido como Santus Thomas Morus; ou Thomas Cromwell, considerado o melhor de seus ministros; e até mesmo um bispo (John Fisher). Elizabeth, que sempre se declarou avessa à pena de morte, moderou com o tempo, é verdade, seus impulsos agressivos. Quando sua prima Mary, que era católica, rainha da Escócia e sua prisioneira, foi acusada por alguns nobres de estar conspirando contra a rainha, para assumir seu lugar, ela argumentou, com base na Magna Carta, que um rei jamais deveria ser julgado na Inglaterra, pois tal autoridade somente poderia sê-lo by his peers, ou seja, por seus pares. Que pares julgaria a rainha da Escócia? Como seus ministros temiam uma revolta dos católicos, um deles, Sir John Davison, redigiu uma ordem de execução e enfiou no meio dos papéis de rotina que a rainha iria assinar sem ler. Resultado: Mary foi decapitada e Sir John proibido para sempre de freqüentar a corte. Milagrosamente, sua vida foi poupada.
Um de seus inúmeros “casos” foi com Robert Dudley, que, no entanto, veio a casar-se com outra mulher, o que enfureceu sobremaneira a rainha. Pois o casal teve um filho, Robert Devereux, que se tornou conde de Essex. Nada obstante a diferença de idades, ela convocou o conde para ser seu auxiliar direto, encarregando-o de cuidar de sua montaria. Ele, porém, preferia farrear (com outras) e, nas horas de folga, participar de alguma batalha, que, ou se gabava de haver ganho, ou acusava seus homens de haverem fracassado. Quando ele foi advertido pela rainha, saiu pelas ruas gritando que estava sendo injustiçado pela rainha a quem tanto servira. Um escândalo.
Resultado: com seu enfant gaté desmandando-se publicamente, não restou a ela alternativa: mandar julgá-lo por traição, quando foi condenado à morte. Ele tinha 35 anos e ela quase 70. Além de ter de suportar o notório desprezo que o rapaz lhe dedicava, além dos abusos por ele cometidos, certo de que seria por ela perdoado, mandar decapitá-lo foi demais até para ela, que caiu em enorme prostração e morreu dois anos depois daquela execução.
E a ética britânica como ficou?
É claro que os tempos agora são outros. Hoje os futuros reis da Inglaterra estudam e trabalham quase como os filhos de famílias comuns (famílias abonadas, é claro). O mais recente candidato a rei foi batizado sem praticamente pompa alguma, depois de ser fotografado saindo prosaicamente da maternidade no colo da mãe. Só faltou a família ir para casa de taxi. Evidentemente, não se chegou a isso por passe de mágica, mas ao longo de um penoso processo de aprimoramento das normas de convivência.
Nossa ética judaico-cristã chegou a tal ponto que nem a paciência do Papa Francisco suportou certos desmandos. Quantos papas foram necessários para que alguém se lembrasse do sermão da montanha?
O pensador polonês Zygmunt Bauman, autor de inúmeros estudos sobre a chamada “Ética pós-moderna”, nome, aliás, de um de seus inúmeros livros, indaga: a ética realmente morreu ou se ainda existe, sendo apenas necessário que seus grandes temas sejam revistos e tratados de modo inteiramente novo?
Como pode ser isso?
Confesso que não consigo distinguir muito bem isso de “modernismo” e “pós-modernismo”. Na realidade, o chamado modernismo, no campo da Ética, tem muito a ver com o fenômeno que muitos pensadores chamam de “a morte de Deus”, para designar um período em que as religiões tradicionais já não são levadas a sério como outrora. Se prestarmos atenção tanto no Código Hamurabi, como nas Tábuas da Lei quanto nos chamados Dez Mandamentos, veremos ali claramente o objetivo de regrar a vida social das pessoas, ainda que sob a ameaça do castigo divino. Ausente Deus, quem fiscalizará os homens?
Com o ser humano descendo à condição de um primata superior, é para perguntar onde encontrará ele base para definir sua vida ética.
Bauman lembra que outrora a escolha era entre duas afirmações opostas: “os seres humanos são essencialmente bons e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua natureza” e “os seres humanos são essencialmente maus e devem ser prevenidos de agir segundo seus impulsos”. Certamente, no primeiro time jogava A.S. Neill, criador do Colégio Summerhill, onde as crianças eram deixadas livres, para serem elas mesmas, segundo seu refrão. Já o velho Freud certamente não aprovaria isso. Não se deve cogitar da repressão total das tendências agressivas do homem. O que podemos tentar é canalizar essas tendências para outra atividade que não seja a guerra” teria dito ele.
O que caracteriza os tempos atuais, diz o professor polonês, é a liberdade generalizada dos costumes. Veja-se, digo eu, o que se passa no campo da sexualidade, que sempre foi visitado pelos moralistas, até mesmo nos mandamentos “de Deus”. Algo visto como um mal necessário. Hoje em dia, nesse campo simplesmente não há padrão de conduta.
Veja-se o que ocorreu com o casamento. É ele tipicamente uma celebração religiosa. O “crescei e multiplicai-vos” sugere que o par deve ter sexos diversos. Caso contrário, como multiplicar? O Estado, no entanto, apropriou-se indevidamente do nome para batizar com ele um contrato civil de convivência, que poderíamos chamar de “união heteroafetiva”. Paralelamente, a homossexualidade, que, de atividade criminosa, como soube Oscar Wilde, tornou-se aceita e até mesmo incentivada, com direito a paradas coloridas pelas ruas das capitais, adquiriu status simplesmente impensável, ao ver a união homoafetiva, ou seja, o disciplinamento do contrato civil que liga duas pessoas do mesmo sexo, elevado a celebração religiosa, equiparável ao casamento. Não se trata de desmerecer esse tipo de união, que, como contrato, deve, de fato, ser regulamentado pelo Estado. O que é abusivo é esse mesmo Estado, que prometeu respeitar os credos religiosos, aproveitar-se de um instituto tão importante que os católicos o reputam um sacramento, para dar-lhe conotações que extrapolam do modelo original.
Falar do campo político é o mesmo que enxugar gelo. Nenhum candidato, por mais inexpressivo que seja o cargo eletivo almejado por ele, ganhará durante o seu mandado honorários que compensarão minimamente o que ele gastou para eleger-se. Se essa premissa é inquestionável, como de fato é, dela deveremos retirar suas naturais conseqüências, uma das quais sendo: que capitalista se disporá a financiar a campanha de algum desses candidatos se não tiver em mente recuperar o que gastou, elevado a algumas potências? Não é, por certo, coincidência, que os maiores financiadores de campanhas eleitorais sejam as grandes empreiteiras, as quais, após a eleição, saem vencedoras de concorrências que, nem sempre, se destacam pela lisura.
Estamos, de fato, vivendo um clima de liberdade individual como jamais houve, o que, no limite, leva a um individualismo generalizado. E como fica a ética se, como diz Umberto Eco, ela surge quando eu descubro o outro, aquele que é diferente de mim? Por outro lado, as mil formas da globalização condicionam essas pessoas livres a seguirem um mesmo figurino, por vezes imperceptivelmente. Nem as crianças escapam disso, pois as meninas, por exemplo, têm a liberdade de escolher entre vários modelos de uma mesma boneca. Para não falarmos nos joguinhos eletrônicos e na transformação do telefone celular e as bugigangas nele encartadas em artigo de extrema necessidade. Liberdade?
Daí dizer Bauman, citando Erich Fromm: “Em nosso esforço de escapar da solidão e impotência, estamos dispostos a nos livrar do nosso eu individual, quer por submissão a novas formas de autoridade, quer por conformação compulsiva a padrões aceitos”.


Um comentário:

  1. Mestre Adauto. Li o seu texto e a parte que mais gostei é aquela do humor macabro sacado das cinzas.

    Um abraço

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