06 março 2013

Dura lex?

No meu tempo de jovem havia um estranho slogan de um creme assentador de cabelos: “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”. Que tinha a ver a dureza da lei com os cabelos bem assentados? Publicitário tem cada uma! Recentemente, quando da suspensão do Corinthians pela morte de um garoto em um estádio de futebol peruano, a expressão voltou à baila pela boca de um comentarista esportivo, sem o produto capilar evidentemente.

Ele poderia ter dito também que “a lei é clara”, como costuma dizer um seu colega. Qual lei? Seria a contra pergunta.

Na verdade, o Direito Civil cuida da chamada “responsabilidade por ato de terceiro”, que é uma exceção à regra segundo a qual cada um responde pelos danos que causa. De fato, uma criança ou um animal não podem ter responsabilidade pelos atos danosos que cometem, pois o culpado são os pais ou outro responsável pelo menor e o dono pelos atos do animal. A responsabilidade aí decorre da “culpa in vigilando”, para voltarmos ao latim. Ou seja, o dever que alguém tem de fiscalizar seus filhos e seus animais.

Outro caso de responsabilidade por ato de terceiro ocorre quando a empresa é chamada a responder por dano produzido a terceiro por seu funcionário, como ocorre nos acidentes produzidos por ônibus.

Vamos ao esporte. Imaginemos que um jogador de futebol, dolosamente, agride um jogador adversário, provocando-lhe danos físicos. Pelo princípio acima referido, o clube empregador pode ser acionado civilmente para indenizar o jogador lesionado.

Alguém, no entanto, não sei bem quem, inventou mais um caso de responsabilidade por ato de terceiro: o clube responsável pelo estádio é também responsável pelos danos causados por torcedor ali. Só torcedor desse clube ou qualquer torcedor? Eis a primeira questão.

A responsabilidade aí também estaria baseada na “culpa in vigilando”, pois o clube “mandante” tem o dever de fiscalizar quem pretende entrar em suas dependências, exatamente para prevenir abusos que possam ser cometidos por qualquer torcedor, qualquer seja o clube de sua admiração. Logo, se um torcedor do time “visitante” causa dano a alguém, o time “mandante” deve responder por isso, não por causa de ser o autor pessoa ligada emocionalmente a ele, mas porque o clube faltou a seu dever de fiscalizar devidamente o ingresso em suas dependências.

Logo, sob o ponto de vista jurídico, não há qualquer ligação entre o torcedor e o time pelo qual ele diz torcer. Eu ressalvo “pelo qual ele diz torcer” para mostrar o absurdo do entendimento segundo o qual a camisa do torcedor responsabiliza o clube que ela representa. Imagine-se que arruaceiros italianos entrem no campo de Camp Nou e se ponham a jogar garrafas e rojões dentro do campo num jogo entre Barcelona e Milan. Quem será punido por essa arruaça? Acontece que esses italianos vestem, maliciosamente, a camiseta do Barcelona. Alguém pensaria em punir o Milan, por serem italianos os arruaceiros? E se os tais arruaceiros fossem ingleses?

Como se vê, “nem a lei é sempre clara” nem o “dura lex” resolve todos os problemas jurídicos, tanto que os romanos também diziam “summum jus summa injuria”, para significar que se a lei for aplicada sem bom senso, ela pode levar à negação do Direito.

Para terminar em latinório, a lei deve ser interpretada “com grano salis”. Ou seja, com um grãozinho de bom senso.

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