11 março 2013

A verdade de sempre


           “Durante o fim de semana, os urubus meteram-se pelas sacadas do palácio presidencial, destroçaram a bicadas as malhas de arame das janelas e espantaram com suas asas o tempo parado no interior, e na madrugada da segunda-feira a cidade despertou de sua letargia de séculos com uma morna e terna brisa de morto grande e apodrecida grandeza. Só então nos atrevemos a entrar sem investir contra os carcomidos muros de pedra fortificada, como queriam os mais decididos, nem arrombar com juntas de bois a entrada principal, como outros propunham, pois bastou que alguém os empurrasse para que cedessem em seus gonzos os portões blindados que nos tempos heroicos da casa haviam resistido aos canhões de William Sampier. Foi como penetrar no âmbito de outra época, porque o ar era mais tênue nos poços de escombros da vasta guarida do poder, e o silêncio era mais antigo, e as coisas eram arduamente visíveis na luz decrépita. Na extensão do primeiro pátio, cujas lajotas haviam cedido à pressão subterrânea do mato, vimos o refém na desordem da guarda fugitiva, as armas abandonadas nos armários, a longa mesa de tábuas toscas com os pratos das sobras do almoço dominical interrompido pelo pânico, vimos o galpão na penumbra, onde estiveram os escritórios civis, os fungos coloridos e os lírios pálidos entre os memoriais não atendidos cujo curso ordinário havia sido mais lento que as vidas mais áridas, vimos no centro do pátio a pia batismal onde foram cristianizadas com sacramentos marciais mais de cinco gerações, vimos no fundo a antiga cavalariça dos vice-reis transformada em garagem, e vimos entre as camélias e as mariposas o cupê dos tempos ruidosos, o furgão da peste, a carruagem do ano do cometa, o carro fúnebre do progresso dentro da ordem, a limusine sonâmbula do primeiro século de paz, todos em bom estado sob a teia poeirenta e todos pintados com as cores da bandeira.” – Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca, 1975, p. 7

“Enquanto isso, no salão do conselho de governo invocávamos a união de todos contra o despotismo de séculos para repartir em partes iguais o espólio do seu poder, pois todos haviam voltado o exorcismo da notícia sigilosa mas incontível de sua morte, haviam voltado os liberais e os conservadores reconciliados no remorso de tantos anos de ambições postergadas, os generais do alto-comando que haviam perdido o rumo da autoridade, os três últimos ministros civis, o arcebispo-primaz, todos os que ele não teria querido que estivessem estavam sentados à volta da longa mesa de nogueira tentando por-se de acordo sobre a forma como se deveria divulgar a notícia daquela morte enorme para impedir a explosão prematura das multidões na rua, primeiro um boletim número um do correr da primeira noite sobre ligeiro percalço de saúde que havia obrigado a cancelar compromissos públicos e as audiências civis e militares de sua excelência; em seguida um segundo boletim médico no qual se anunciava que o ilustre enfermo se havia obrigado a permanecer em suas habitações privadas em consequência de uma indisposição própria de sua idade; e, por último, sem nenhum aviso, os dobres rotundos dos sinos da catedral do amanhecer radiante da cálida terça-feira de agosto de uma morte oficial que ninguém haveria de saber nunca com toda certeza se em realidade era a sua.” – Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca, 1975, p. 165

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