24 maio 2016

Um estagiário muito eficiente !


Em dezembro de 2013 meu pai, antes de ser internado pela última vez, mandou um email com uma ação que ele tinha montado, contra a SulAmérica, em razão dela não haver autorizado, por três vezes, a liberação de pagamento de uma “bomba de perfusão” que ele utilizava na quimioterapia domiciliar:
“Pat. Dê uma lida e faça suas adaptações. Ad”.

Quem conheceu meu pai sabe o quanto era rápido, inteligente e excelente escritor. Minhas adaptações foram meramente estéticas e juntada de documentos.

Lembro como se fosse hoje ele ali, sentado no quarto do hospital, papéis na mão, caneta na outra, fazendo mais alguns ajustes no texto que ele mesmo tinha feito:
“Perfeito. Ótimo trabalho, Dra. Pat”.

Distribuí a ação no dia seguinte e logo foi concedida a tutela.

Mal sabíamos nós que a tal “bomba de perfusão” não seria mais necessária, mas ainda continuamos com a ação por causa do ressarcimento e pedido de danos morais. Ele faleceu três meses depois.

Ontem recebi um telefonema, do nada, de um lugar chamado “Concilie”, informando que a SulAmérica estava disposta a participar de uma Conciliação Online e se havia interesse do meu cliente. Pensei até em dizer que precisaria ir a uma sessão espírita para conseguir perguntar a ele, mas achei que ela não entenderia... Apenas concordei.

Até 10h30 da manhã de hoje eu não tinha a menor ideia de como isso funcionaria, mas a palavra Conciliação é sempre música para meus ouvidos.

E assim foi: em pouco mais de 1 hora, num “chat”, eu, uma Conciliadora e a Advogada da SulAmérica chegamos a um denominador comum. Esse acordo agora será juntado nos autos do processo e caso a empresa não cumpra, pode ser executado.

E nessa 1 hora, uma vida inteira passou pela minha cabeça: meu ingresso na Faculdade de Direito por sugestão do meu pai; meu exame da OAB/SP, com ele me parabenizando efusivo pela minha desenvoltura, ouvida sentadinho numa sala ao lado; as vezes em que eu datilografava as petições que ele fazia à mão, simplesmente para que eu fosse pegando o jeito (já que era um exímio datilógrafo); do nosso almoço no Pátio do Colégio e visita ao Centro Cultural da Caixa, numa tarde em que fomos à cidade para retirar um processo; da sabedoria que ele tinha em abrir a página certa de um livro ao procurar determinado Acórdão ou citação; de uma das minhas primeiras audiências, já como Advogada, mas que ele insistiu que eu fizesse, apresentando-se ao Juiz como meu estagiário...

E senti por ele não estar sentado ali, ao meu lado, acompanhando algo pelo qual sempre brigou: uma advocacia informatizada e mais ágil.

Por outro lado, a presença espiritual foi muito clara, pois não tenho a menor dúvida de que foi ele quem intercedeu para que essa situação acontecesse.

Perfeito. Ótimo trabalho, Dr. Adalon !

Sabia que esse meu estagiário tinha um futuro promissor.

23 maio 2016

Amigado com fé, casado é !

Em 1981 meu pai, Adauto Suannes, foi nomeado para o Tribunal de Alçada Criminal. Eu tinha 12 anos. E ali ficou até ser promovido a Desembargador, em 1983 (ou 84?). 

Na minha cabeça, essa mudança foi muito significativa: ele passou a trabalhar 4 dias inteiros por semana em casa.
 

Até então, Juiz que era, ficava somente algumas manhãs, até ouvirmos o interfone, em seguida ao almoço, avisando que o carro do Tribunal já estava esperando. Na minha memória afetiva, raros eram os almoços em que não estávamos todos os 5 reunidos em volta da mesa.
 

Enfim, agora como Juiz de Alçada, meu pai recebia semanalmente uma pilha de processos que vinham amarrados com um barbante de (fios de) algodão: o próprio motorista trazia (lembro de luvas em suas mãos, mas não sei se faz parte apenas de uma memória imaginativa) e já levava os que estavam prontos.
 

Quando eu estava em casa corria para atender a porta e desatar o nó daquela pilha. Levava todos para a mesa que ficava ao lado da máquina de escrever e abria os processos. Mas não em qualquer lugar. Não tinha graça a parte inicial, muito técnica, que só depois de 7 anos vim a saber, na aula de Direito Penal, que era nada mais nada menos que a Denúncia.
 

O que me interessava certamente não era isso. Era uma sequência de páginas em papel de seda, fininho, carbonado... A cereja do bolo: o interrogatório. Achava curiosa a pergunta sobre sua cor (preciso dizer que a maioria era parda?), a descrição do que ele teria feito, mas o que mais chamava minha atenção era: qual o estado civil?
 

Devo ter lido em alguns “casado” ou “solteiro”, mas o divertido era ler “amasiado”, “amigado”, “amancebado”. Nem sei se perguntei alguma vez ao meu pai o que significasse ou se eu mesma deduzi, mas até hoje acho muito mais charmoso do que “em união estável”.
 

Passada essa fase, era hora de olhar o desenho da silhueta de uma pessoa, com indicações dos locais das lesões. E se fosse meu dia de sorte, na sequência vinham as fotos da vítima.
 

Pode parecer macabro, mas era tudo muito divertido para mim. Sentia-me muito importante nessa função que eu mesma me dei ou talvez tenha adquirido em razão da anuência tácita do meu pai. Meu primeiro contato com processos foi nessa fase, já que, enquanto Juiz de Primeiro Grau, nunca trouxe nada para casa.
 

Sempre tive fascínio pela parte teórica do Direito Penal: me lembro das inúmeras vezes em que chegava da Faculdade, depois das aulas com o Camargo Lima, e discutia com meu pai o que tinha aprendido. Ainda na PUC, fiz Curso de Medicina Legal em que as aulas eram na Faculdade de Medicina, na Av. Dr. Arnaldo. A teoria era muito instigante e investigativa.
 

Na prática, percebi que a Teoria era outra. E nunca tive interesse em Advogar nessa área.
Em 1992, meu pai participou da fundação do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que tem como primeira finalidade, “defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal”. E não tenho dúvida de que isso sempre pautou sua vida profissional.
 

Em 2014, ano de sua morte, no 20º Seminário do IBCCRIM, o Instituto lhe prestou uma linda homenagem, na solenidade de abertura, com uma cuidadosa apresentação de fotos embalada pela leitura de um emocionante texto escrito por um querido seu amigo.
 

Dia 19 de maio, 2 anos depois, uma nova homenagem foi marcada: o auditório do IBCCRIM passará a ter seu nome, “afim de que permaneça na memória institucional”.
Não acredito em coincidências, nem ele acreditava.
Mas devo admitir que achar o bilhete abaixo enquanto guardava em sua pasta o convite para a solenidade, me arrepiou.
 

Ou será que não é para tanto?

21 maio 2016

Texto de Alberto Silva Franco: Auditório do IBCCRIM chama-se agora Adauto Alonso Silvinho Suannes


                      "AMIGAS E AMIGOS               

 Admito, com toda a franqueza, que resisti o mais que pude à missão de falar no momento em que se inaugura com o nome de Adauto Suannes o auditório  do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E qual o motivo que se ocultava atrás dessa resistência? Tomando de empréstimo as palavras de  Carlos Drummond de Andrade,  o sentimento de que "não há falta na ausência". "A ausência é um estar em mim"[1] e a " ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim" [2]. E tal ausência incorporou-se a todos os filhos, a todos os parentes e a todos os amigos de Adauto, como uma subjetividade comum.
                
Para nós, Adauto não partiu: distanciou-se apenas, mas tudo quanto ele representou em vida, acomodou-se em cada um de nós como um legado precioso e intransferível.
              
É bem por isso que, em lugar de estabelecer um clima de luto ou de tristeza, creio ser o instante exato no qual  sua  multifacetada personalidade  deva vir à tona para dar suporte à merecida homenagem que hoje a ele se presta.
              
Foram inumeráveis as qualidades deste ser humano tão especial.  Adauto foi sempre um personagem complexo. E por tal razão, colecionava amigos incondicionais e inimigos ferrenhos.  Ele nunca seria capaz, como dizia Martin Buber, de "permanecer na praia, contemplando as espumas das ondas". Corria sempre o risco de "atirar-se na água e nadar[3]".  Não tinha medo de afrontar os perigos, viessem de onde viessem. E suas ações eram o retrato exato de seu pensamento. Sem subterfúgios, sem enganos.  Não era homem de encobrir opiniões, emoções ou paixões. E se não deixou um diário de sua vida, escreveu, como ele próprio afirmou, "páginas e mais páginas" (...)" à espera de alguma oportunidade para serem utilizadas pois nelas"[4],  como afirmava Norberto Bobbio,  exprimiria" não só sentimentos e ressentimentos,  simpatias e antipatias, intolerâncias, pequenas indignações e enormes desprezos, mas também comentários sobre os acontecimentos do dia, breves raciocínios para desfazer uma dúvida, argumentos a favor ou contra uma tese controvertida, rascunhos de artigos futuros. Essas folhas, como enfatizava Bobbio, contém, não raro,  anotações autobiográficas, lançadas no papel nem tanto  para transmitir à posteridade acontecimentos memoráveis, quanto para dar vazão a uma ansiedade de espírito, refletir sobre um erro cometido com o propósito de não o repetir, anotar um defeito para dele me libertar, tornando-me consciente dele e confessando-o, se não aos outros, pelo menos a mim mesmo[5]".
           
Foi juiz, advogado, escritor, cronista, poeta, pintor, escultor, gravurista e, ainda, foi um dos fundadores do IBCCRIM.  E todas essas múltiplas atividades dão conta de que Adauto não era uma pessoa comum, mas alguém que tinha indiscutíveis traços de genialidade. Com isso, não digo que só lhe credito virtudes.  Não é para  o simples louvor  que chamei a atenção para a variedade de suas ações. Como qualquer ser humano, Adauto conjugava virtudes e defeitos: tinha momentos de arroubos irrefreáveis e de gestos de extrema humildade; passava por instantes de euforia e de depressão; era, por vezes, lobo solitário e outras  tantas vezes, apaixonado por seu poder criativo; demonstrava alegrias intensas e tristezas profundas, mas o saldo final,  o que dava nota, tom e sentido à sua personalidade, era-lhe extremamente favorável.

Se se pudesse em poucas palavras resumir tudo quanto Adauto foi em vida, usaria a sua própria definição: "nas vésperas de me tornar, irremediavelmente, um setuagenário, achei que deveria prestar contas daquilo de melhor recebi ao nascer: MINHA CAPACIDADE DE ME INDIGNAR[6]".

E tal capacidade fez-se presente na sua judicatura. Lembro-me  de trecho de uma  saudação por ele proferida na qual  destacava a insuportável impotência do juiz " para fazer face a um sistema social desumano, que faz questão de manter marginalizado aquele que se atreveu a denunciar, comportamentalmente, às regras cínicas e injustas da sociedade em que vive. Quem é o ladrão senão alguém que nos joga no rosto o sentido infantil de uma concepção do direito de propriedade puramente individualista, incompatível com o "bem comum" a que tal direito se destina? Quem é o ladrão senão alguém que executa, manu militari, aquela hipoteca social que pesa sobre toda propriedade individual, para usar a expressão de Paulo VI?"[7]

E como não retratar sua revolta contra "os  Juízes frios, legalistas, parados no tempo"? "Somos Juízes que conhecemos a candente advertência de Calamandrei: "reduzir a função do juiz a um puro silogismo significa empobrecê-la, torná-la árida, dessecá-la. A Justiça é algo mais: é criação que surge de uma consciência viva, sensível, vigilante e humana. É precisamente este calor vital, este sentido de contínua conquista, de atenta responsabilidade, que necessita ser prezado e desenvolvido no Juiz. O maior perigo que, numa democracia, ameaça os juízes e, em geral, todos os funcionários públicos, é o perigo da rotina, da indiferença burocrática, da irresponsabilidade anônima. Para o burocrata, os homens deixam de ser pessoas vivas e tornam-se números, fichas, documentos: uma papelada como se diz na linguagem cartorária, isto é, um conjunto de papéis  com capas que contém muitas folhas protocoladas e, no meio delas, um homem dessecado, sem vida. Para o burocrata, as aflições do homem vivo que está aguardando alguma providência valem pouco: ele vê aquele processo que estorva sua mesa e apenas trata de encontrar um expediente para fazê-lo passar para a mesa de outro burocrata e de descarregar sobre ele o fastio daquele aborrecimento[8]".

Adauto estava mil anos-luz à frente dos juízes de sua época. Sou testemunha, como seu companheiro na 5a. Câmara do extinto Tribunal de Alçada Criminal  de São Paulo, do quanto ele contribuiu para abrir novos caminhos. Seu desapego ao texto da lei ordinária, diante de princípios e regras constitucionais, sua exclusão de todo tipo de  corporativismo,  sua visão abrangente do saber, sua perspectiva de garantidor de direitos que atribuem dignidade ao ser humano, seu enfrentamento ostensivo a todo tipo de exclusão, seja social, seja provocada pelo não-consumo,  sua luta pela igualdade de gêneros, contra o racismo e contra a violência policial, tornaram-no um juiz moderno e  democrático, modelo a ser seguido por qualquer juiz.

Como advogado, após sua aposentadoria  causada por injusto ato do Tribunal de Justiça, fez sucesso e nunca se separou dos menos afortunados para os quais, diante da detecção de flagrante injustiça, impetrava habeas corpus para Tribunais Superiores ainda que o favorecido desconhecesse tal impetração.
Na qualidade de escritor, não se restringiu a escrever livros jurídicos de alto gabarito. Foi além.  Foi escritor de inumeráveis contos e  de outras tantas crônicas.  Não sei se  produziu romances. Sei apenas  – e ele dizia  isso com frequência–  que estava em busca de um editor para publicação de outros livros. Dava gosto vê-lo escrever, seja na velha máquina datilográfica, seja no computador: seus dedos tamborilavam as teclas na mesma velocidade com que seu cérebro funcionava e um texto, simples ou complexo, jurídico ou literário, surgia como um passe de mágica. Adauto tinha particular conexão com a literatura que, como afirma Vargas LLosa, " é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações  e desígnios vitais, as geografias e as circunstâncias em que existem e, inclusive os tempos históricos que determinam o seu horizonte[9]".  Em resumo, a boa literatura foi para ele, como recentemente ressaltou Amós Oz: "a capacidade de fazer se abrir um terceiro olho em nossa testa[10]", com o poder de nos provocar perturbações.

Na arte, Adauto, com o nome fictício Adalon, não foi uma figura menor. Escultor produziu peças de real valor, premiadas no Brasil e no estrangeiro. Como pintor expressava seus sentimentos mais profundos. Seus traços e as cores  que seus pinceis imprimiam  à tela demonstravam, com extrema fidelidade,  o seu estado  interior: tranquilo ou explosivo, alegre ou depressivo. Suas gravuras não fugiam à sua maneira de ser e punham à luz o seu temperamento e à sua forma de entender a vida e o mundo.

Por derradeiro, e para embasar a  cerimônia na qual Adauto empresta seu nome ao maior e mais significativo espaço do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, devo partir de uma  indagação: o que ele representou para o IBCCRIM? Foi um dos subscritores da ata de fundação no dia 14 de outubro de l992. Era o trigésimo quinto associado. Isto representaria muito pouco se sua ação se circunscrevesse à assinatura de uma ata. Adauto foi além. Acompanhou pari passu, dia a dia, tijolo a tijolo,  parede a parede a construção física do Instituto desde a pequena sala da Rua Tabatinguera até a ocupação quase integral do Palacete Elza, na rua XI de Agosto. Mas sua contribuição  avançou bem mais à frente.  Por sua coragem, por sua ousadia, e sobretudo, por seu exemplo, transformou em realidade os objetivos estatutários: o respeito incondicional dos princípios e das garantias constitucionais, a defesa do Estado Democrático  e Social de Direito e a luta apartidária em prol das minorias e dos excluídos sociais. Seus escritos no Boletim do IBCCRIM e na Revista Brasileira de Ciências Criminais dão conta do empenho e da dedicação com que sempre se conduziu.  Adauto resume, em verdade,  a própria história do IBCCRIM. Sua figura permite recompor a instituição  desde os momentos inaugurais, com as dificuldades próprias de seu lançamento; tornam explícitas as  variadas crises pelas quais passou, e  comprova o reconhecimento de sua seriedade científica. Adauto foi presença constante em cada uma dessas etapas. Quem hoje   ingressa  no Instituto talvez  imagine que o IBCCRIM desde seu início até a presente data teve sempre a mesma estrutura atual. Pouco  se sabe sobre o enorme sacrifício pessoal  realizado por seus associados  desde os anos iniciais até o dia de hoje para torná-lo vivo e produtor de conhecimentos, sem receber recursos financeiros oficiais e sem, em momento algum, renunciar ou desmentir seus propósitos e seu passado.  Adauto foi e será sempre o cavaleiro andante do IBCCRIM, o homem destemido  e um tanto quixotesco que não se conformava com as injustiças do mundo e se punha, lança à mão, a enfrentar todo e qualquer obstáculo que representasse ofensa à dignidade da pessoa humana. A placa  que ora se inaugura chama a atenção para o poder de indignação  de que Adauto era possuidor desde seu nascimento, mas, além disso,  lembrará,  a todos que frequentam  o auditório do IBCCRIM que sua ausência deverá estar sempre marcada em cada um de seus associados e por ter sido uma ausência assimilada nunca  será apagada. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais será, enquanto puder ser, o ponto de encontro de pessoas, como Adauto, que carregam dentro de si o propósito de ir ao encontro de utopias, mesmo que estejam distantes demais e  possam parecer impossíveis de serem alcançadas. Isto faz  lembrar Mário Quintana[11]:

"Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!"

 Alberto Silva Franco, 19 de maio de 2016.


[1] ANDRADE, Carlos Drummond de.  Corpo e Novos Poemas, São  Paulo: Editora Record, l984:
          "Por muito tempo achei que a ausência é falta.
            E lastimava, ignorante, a falta.
            Hoje, não a lastimo. Não há falta na  ausência.
            A ausência é estar em mim"   
[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. Ob. cit.:
            "porque a ausência, essa ausência assimilada
               ninguém a rouba de mim"
[3] BUBER, Martin, Eu e Tu, trad. Newton Aquiles von Zuben, Introdução, São Paulo: Cortez & Moraes Ltda., l977, .p. XXVIII e XXIX.
[4] SUANNES, Adauto,  Justiça & Caos, Curitiba: Instituto Memória,  2008, p.20
[5] BOBBIO,  Norberto. O tempo da Memória,  Rio de Janeiro:  Editora Campus, l997, p. 3/4.
[6] SUANNES, Adauto, ob. cit. p.2
[7] Saudação  proferida por Adauto Suannes na cerimônia de recepção dos Juízes Benedito Mário Vitirito e Evandro Antonio Cimino., no   Tribunal de Alçada  Criminal de São Paulo
[8] Saudação aos Des. Benedito Vitirito e  Evandro Antonio Cimino
[9] VARGAS LLOSA, Mario. A verdade das Mentiras,   trad. Cordelia Magalhães, São Paulo: Arx, ,2004, p. 380
[10] OZ, Amós. Como Curar Um Fanático,  trad. Paulo Geiger, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 13
[11] QUINTANA, Mário, Espelho Mágico, 2a.ed. 8a. Reimpressão, São Paulo: Editora Globo, 2010, p.28.

18 janeiro 2014

Quebra cabeças


Antigamente, coisa aí de uns 50 anos, algumas empresas publicavam no fim de ano um tal “almanaque” (palavra de evidente origem árabe, que se refere originariamente às condições do tempo), livro onde havia toda sorte de informação, além de alguns problemas apresentados de forma curiosa, genericamente chamados de “quebra-cabeças”, nome que sugere a dificuldade que vinha pela frente.

Eis alguns exemplos:

a)  Numa batalha, um grupo de 50 soldados apresentou ferimentos diversos: 35 soldados perderam um olho, 36 perderam uma orelha, 40 perderam um pé e 42 perderam uma das mãos. Quantos soldados, no mínimo, sofreram os quatro ferimentos?

b)  A professora Maria Tereza mora na Avenida Paulista n. 225, apartamento 51. Um dia ali aparece um agente do serviço de recenseamento, anotando numa ficha os dados dos moradores, a saber, ela e suas duas filhas. Conversa vai, conversa vem, só falta registrar a idade das moradoras do apartamento, o que ele, gentilmente, deixou para o fim. Consultada sobre isso, a professora responde: “Se você somar a idade de nós três, obterá o número do nosso apartamento. Se você multiplicar nossas idades, uma pela outra, obterá o número do prédio”. Se você fosse o recenseador, que números poria na ficha?

c)   Três garotos entram numa lanchonete e ao final vem a conta: R$ 30,00. Cada um entrega uma nota de R$ 10,00 ao garçom e se retiram. O caixa, porém, verifica que a conta estava errada. O valor total correto é de R$ 25,00. Em razão disso, manda o garçom devolver R$ 5,00 aos garotos. Como o garçom não consegue dividir R$ 5,00 por 3, ele dá R$ 1,00 a cada garoto e embolsa os R$ 2,00 restantes. Cada garoto, portanto, pagou R$ 9,00, num total de R$ 27,00. Somando-se a isso os R$ 2,00 que o garçom embolsou temos R$ 29,00. Quem ficou com o R$ 1,00 restante?

Divirta-se.

23 dezembro 2013

Natal


Até que idade as pessoas acreditam na existência real do Papai Noel?  O Felipe, por exemplo, hoje com quase 7 anos, descobriu, tempo faz, que o Papai Noel é de plástico e mora no shopping. Pragmaticamente, porém, ele prefere acreditar na existência dele e nos vários presentes que ele traz, encomendados pelos pais, pelas tias, pelos avós e pelos padrinhos. Acho que aprendeu isso lendo Pascal, às escondidas: Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver certo, será beneficiado com a ida ao Paraíso. Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver errado, nada terá perdido. A avó prometera-lhe que neste ano o bom velhinho iria trazer uma tenda indígena para o bom garoto. E onde achar a tal tenda? Resultado: ir prevenindo o Felipe de que Papai Noel talvez não encontre a tal tenda. “E se ele não encontrar a tenda, Felipe?” indaga a aflita avó. E ele, zen a mais não poder: “Se ele não encontrar a tenda eu não ganho uma tenda no Natal.” E mais não disse nem lhe foi perguntado.
Aliás, em que dia, mês e ano nasceu Jesus de Nazaré? Se considerarmos que estamos no ano 5.774 do calendário judaico, Jesus teria nascido em 3.761 do calendário judaico, num mês que certamente não se chamava Dezembro. E então, como ficamos?
Sabe-se que o calendário cristão é um dos inúmeros calendários possíveis. Indo-se a qualquer enciclopédia, descobre-se que, além dele e do hebraico, há o calendário muçulmano, o calendário maia e até mesmo um estranho calendário criado pelos revolucionários franceses.
O calendário hebraico introduziu a semana de sete dias, divisão que seria adotada em calendários posteriores. É possível que sua origem esteja associada ao caráter sagrado do número sete, como ocorre nas sociedades tradicionais, ou que se relacione com a sucessão das fases da lua, já que a semana corresponde aproximadamente à quarta parte do mês lunar.
A civilização islâmica adotou o calendário lunar, em que o ano se divide em 12 meses de 29 ou 30 dias, de forma que o ano tem 354 dias. Como o mês sinódico não tem exatamente 29,5 dias, mas 29,5306 dias, é necessário fazer algumas correções para adaptar o ano ao ciclo lunar.
A origem do calendário muçulmano se fixa na Hégira, que comemora a fuga de Maomé da cidade de Meca para Medina, que coincide com o dia 16 de julho de 622 da era cristã, no calendário gregoriano.
Um caso muito singular é o do calendário republicano, instituído pela revolução francesa em 1.793, e que tinha como data inicial o dia 22 de novembro de 1.792, data em que foi instaurada a república. Pretendia substituir o calendário gregoriano e tornar-se universal. O ano passaria a ter 12 meses de trinta dias, distribuídos em três décadas cada mês. Estas eram numeradas de um a três, e os dias de um a dez, na respectiva década, recebendo nomes de primidi, duodi, tridi, quartidi, quintidi, sextidi, septidi, octidi, nonidi, décadi. Deram-se, depois, às décadas, nomes tirados de plantas, animais e objetos de agricultura. Dividiu-se o dia em dez horas de cem minutos, e estes com cem segundos de duração. As denominações dos meses inspiraram-se nos sucessivos aspectos das estações do ano na França. Aos 360 dias acrescentavam-se cinco complementares, anualmente e, um sexto a cada quatriênio. Teve curta duração (pouco mais de 13 anos) e a 1º de janeiro de 1.806, Napoleão Bonaparte acabou com a brincadeira, restabelecendo o uso do calendário gregoriano.
O calendário juliano remonta ao antigo Egito. Foi estabelecido em Roma por Júlio César no ano 708 da fundação de Roma. Adotou-se um ano solar de 365 dias, dividido em 12 meses de 29, 30 ou 31 dias. A diferença do calendário egípcio está no fato de se introduzirem os anos bissextos de 366 dias a cada quatro anos, de forma que o ano médio era de 365,25 dias. O esquema dos meses foi reformulado posteriormente para que o mês de agosto, assim nomeado em honra ao imperador Augusto, tivesse o mesmo número de dias que o mês de julho, cujo nome é uma homenagem a Julio César.
Em 1.582, o papa Gregório XIII, aconselhado por astrônomos de sua confiança, por intermédio da bula Inter Gravissimas, de 24 de fevereiro, decretou a reforma do calendário, que passou, em sua homenagem, a chamar-se gregoriano, e é o mais perfeito utilizado até hoje. Mesmo assim, apresenta algumas deficiências. Uma delas é a diferença na duração dos meses (28, 29, 30 ou 31 dias) e o fato de que a semana, que é utilizada quase universalmente como unidade de tempo de trabalho, não esteja integrada nos meses, de tal forma que o número de dias trabalhados durante um mês pode variar de 24 a 27.
Apesar de representar um avanço, o calendário gregoriano demorou para ser aceito, principalmente em países não católicos, por motivos sobretudo político-religiosos. No Brasil, então colônia de Portugal, que na época estava sob o domínio da Espanha, o calendário gregoriano entrou em uso em 1.582. Nas nações da Alemanha, foi adotado no decorrer dos séculos XVII (em poucos casos, antes de 1.700) e XVIII (Prússia, 1.775); na Dinamarca (incluindo então a Noruega), em 1.700; na Suécia (com inclusão da Finlândia), em 1.753. Nos cantões protestantes da Suíça, no princípio do século XVIII. Na Inglaterra e suas colônias, entre as quais os futuros Estados Unidos, em 1.752. Nos países ortodoxos balcânicos, depois de 1.914 (Bulgária, 1.916, Romênia e Iugoslávia, 1.919; Grécia, 1.924). Na União Soviética, em 1.918. Na Turquia, em 1.927. No Egito, já havia sido adotado para efeitos civis desde 1.873, mesma data em que foi aceito no Japão. Na China foi aceito em 1.912, para vigorar simultaneamente com o calendário tradicional chinês, até 1.928.
E como apareceu o dia 25 de Dezembro?
Segundo o Evangelho de Mateus, capítulo 2, versículos 1 a 3, “tendo nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo de Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém dizendo: ‘onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois vimos sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.’ E o rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se e, com ele, toda Jerusalém.” Acontece que Herodes reinou de 37 a 4 a.C., feita a devida conversão do calendário.
Assim, para que não tenhamos de desmentir o evangelista, só nos cabe, como faz a própria Igreja Católica, admitir este paradoxo: Jesus nasceu 5 ou 6 anos “antes de Cristo”, ao contrário do que disseram os assessores do Papa Gregório, que fizeram iniciar a era cristã na data de tal nascimento.
Quanto ao 25 de Dezembro, referia-se ele a uma festa pagã: “Natalis Solis Invicti” (nascimento do sol invencível) e era uma homenagem ao deus persa Mitra, muito popular em Roma. Como aconteceu com a festa judaica denominada “Pessach”, ou “Festa da Libertação”, que deu na festa cristã da Páscoa, assim também a festa a Mitra converteu-se na Festa a Jesus, tudo isso  independentemente de calendário.

16 dezembro 2013

As sandálias de cada um

Ne sutor ultra crepidam.”

 Diz-se que jornalista é um profissional que tem de discorrer sobre o que sabe e também sobre o que ignora. Est modus in rebus meus caros, como se dizia no meu tempo. Ou, em linguagem de hoje, devagar com o andor que o santo é de barro.
Agora que o Supremo Tribunal Federal se pôs a mostrar que em espingarda velha, bundinha de criança e cabeça de juiz não dá para confiar, pois jamais saberemos o que sairá dali nem quando e, em consequência, os jornalistas descobriram algo chamado “voto vencido” e, em consequência, descobriram uma coisa chamada “embargos infringentes” e, em consequência, que uma decisão definitiva nem sempre é tão definitiva assim. as bobagens “jurídicas” pululam na imprensa falada a escrita. Se juiz do STF pode inventar, por que eu não hei de poder? Pouco importa dizer que um juiz, especialmente de uma Corte Superior, não faz afirmação alguma sem trazer rios de lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais. Quando mais não seja, eles invocam a hermenêutica e a exegese para afirmar ou negar algo.
Quantos jornalistas, porém, conhecem essas palavras? Até juiz de futebol se põe a pontificar, afirmando algo que os hermeneutas e os exegetas já aboliram há tantos lustros: “a lei é clara”. Quando alguém, naqueles idos e vividos, disse que cessat in claris interpretatio,  houve quem dissesse: “mas eu só saberei se o texto da norma jurídica é claro depois de interpretá-lo”.
Já mostrei a bobagem disso, mas volto ao tema.
a) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time A invade a área, o que é proibido. O jogador B, que não notou isso, bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da tal invasão. Agiu ele corretamente?
b) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time B invade a área, o que é proibido. O jogador B bate a falta e a bola passa por cima da trave. O juiz anula o lance por causa da invasão. Agiu corretamente?
c) Pênalti contra o time A. O goleiro do time A é advertido pelo juiz de que deve permanecer sobre a linha que demarca o campo, sob o travessão. O goleiro, entretanto, afastando-se, fica além dessa linha. O jogador do time B bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da má posição do goleiro. Agiu corretamente?
d) Jogo final de campeonato. Um dos times vence por 3 a zero. Chegando o segundo tempo, aos 43 minutos, o árbitro assinala à mesa que dará 2 minutos de prorrogação. Agiu corretamente?
        Uma regra não é fruto do capricho do legislador. Ou, pelo menos, devemos considerar que não o seja. Ela surge com alguma finalidade, em face da necessidade de disciplinar determinados comportamentos humanos, sejam eles considerados genericamente (“não matar”) sejam eles considerados especificamente (“o advogado deve comportar-se com lealdade no processo”). Quando analisamos uma regra com os olhos nessa finalidade dizemos que estamos fazendo uma interpretação teleológica, como sabemos todos, mas os comentaristas de futebol não o sabem.
Quando diz que o goleiro deve ficar sobre a linha de gol, o que a regra quer impedir é que ele, avançando campo adentro, diminua o espaço no qual o cobrador do pênalti poderá meter a bola, pela redução da visibilidade do atacante. Até uma criança sabe que será impossível fazer o gol na cobrança do pênalti se o goleiro estiver a um metro do cobrador. Se o goleiro resolver aumentar o campo visual do atacante, problema do goleiro e do respectivo time. Anular o gol será “beneficiar o infrator”, como dizem eles. Em latim se diria: nemo allegare turpidudinem suam potest”.
Da mesma forma, se quem deu margem à nulidade do lance pertence ao time cujo atacante chutou a bola fora do gol, anular o lance subsequente será, mais uma vez, “beneficiar o infrator”. O mesmo se diga se, ao contrário, quem deu margem à tal nulidade foi o jogador do time que sofreu o gol de pênalti. Em latim: Utile per inutile non vitiatur.
Quanto à prorrogação do jogo, ela tem uma finalidade: compensar as interrupções havidas, na suposição de que, não houvessem elas ocorrido, o resultado do jogo poderia ser outro. Só que a possibilidade de um time fazer três gols em dois minutos é materialmente impossível. Lá dizia o latim: Nemo tenetur ad impossibilia.
Um lembrete final: para quando o bandeirinha (hoje se diz “juiz auxiliar”) deixa de marcar o impedimento que, nas circunstâncias não era claro, o princípio jurídico, que todo bandeirinha deveria conhecer, será este: in dubio, pro ludo. Ou seja, na dúvida, segue o jogo, como berra um dos locutores da TV. E deixe a torcida chiar, já que ela não sabe latim.
Pois a Folha de S.Paulo vem de publicar comentário do jornalista Hélio Schwartzman, intitulado “Garfando a Portuguesa”, que demonstra aonde pode chegar o atrevimento da ignorância.
Sem falar em exegese nem em hermenêutica, coisas que, pelo jeito desconhece, afirma o articulista: “Em qualquer caso, futebolístico ou jurídico, para chegar a uma solução que a maioria das pessoas classificaria como justa é preciso fazer referência a um conjunto de regras não escritas que chamamos de bom senso.”
A “cultura” desse jornalista, pese seu nome de família, certamente não lhe permitiu conhecer o que aconteceu na Alemanha quando “a maioria das pessoas” concordou, explicita ou implicitamente, com a depuração da raça ariana. Pelo jeito ele também desconhece a existência do Tribunal de Nuremberg, no qual até juízes foram julgados e condenados, quando mais não fosse, porque haviam agido com “bom senso”.
Antes o mesmo jornalista havia cometido esta pérola: “Não dá para aplicar todas as regras a todos o tempo todo. Fazê-lo transformaria nossas vidas num inferno.”
Em suma, ele não distingue as normas jurídicas das normas meramente éticas. Procuro agir eticamente desde que me levanto até o momento de voltar para a cama e posso afirmar ao tal jornalista que nem por isso minha vida é um inferno. Ao contrário, convivo com pessoas educadas e todos nós estamos convencidos de que a única maneira de progredirmos pessoal e coletivamente é “não fazermos ao próximo o que não gostaríamos que ele nos fizesse”.
 

10 dezembro 2013

A violência nos esportes


“Briga de torcidas, com vários feridos, interrompe jogo de futebol por 30 minutos” (dos jornais)”

No final do século passado, na cidade de São Paulo, uma briga de torcidas no interior de um estado de futebol, produziu vários feridos, dentre os quais dois vieram a falecer. O governo do Estádio promoveu um simpósio para ser debatido o assunto por especialistas, daí resultando o livro Violência no Esporte, com os textos daquelas palestras. Tocou-me falar sobre Agressividade e Violência, algo que transcrevo a seguir.
Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens (hoje já há luta de boxe entre mulheres, o que para muitos simboliza um “avanço cultural”, avanço esse que torna muitas delas mais agressivas do que os homens em sua vida diária, como quando estão no trânsito, não sendo rara a utilização de gestos obscenos ou mesmo palavras de baixo calão nessa ocasião, diante do comportamento de algum motorista que elas tenham por inaceitável). A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução” do ser humano a caminho de Cro-Magnon.
O mesmo se poderia dizer da esgrima, óbvia sublimação do antigo duelo a espada. A disputa de arco e flecha ou mesmo de tiro-ao-alvo não estão aí para nos indicar que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua dentro de cada um de nós?
E qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).
Mais difícil será aceitar que o civilizadíssimo jogo de tênis (que até há poucas décadas exigia que os disputantes se vestissem como vestais, roupa impecavelmente branca, até que uma brasileira, Maria Esther Bueno, como boa representante de nossa irreverência, quebrasse a tradição,mandando bordar umas palmeirinhas na barra da saia) seja sublimação de um duelo a espada: por força das normas de civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário. Ficou um espaço vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. A expressão “matar o ponto” parece denunciar essa origem: mata-se o ponto em lugar de matar o adversário.
Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, a respeito da figura do torcedor típico: “El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.[1]
Admira, pois, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é simbolizado mostraria que não se trata de algo tão extraordinário assim, embora não devamos quedar de braços cruzados diante de tais ocorrências.
De fato, quando uma tribo de guerreiros pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso.
Hoje, graças ao avanço da civilização, não mais temos guerras de tribos, ou seu número é quase insignificante. Mas o homem conserva em si a natural agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta. Que fazer com essa força? Sublimá-la, quando mais não seja utilizando os games da internet.
O que acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada participante de uma equipe veste um uniforme que distingue seus componentes dos jogadores do outro time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola.
Se isso não é assim, por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor leva uma taça? Trata-se, ainda uma vez, ao que tudo indica, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta. O Santo Graal não é, ao fim e ao cabo, exatamente isso? [2] Outras vezes o vencedor recebe uma salva de prata, o que dá na mesma, pois ali, simbolicamente, está a cabeça do vencido.
Se uma partida de futebol contém, como estamos convencidos de que contém, os mesmos ingredientes de uma guerra entre tribos, com as alterações introduzidas pela civilização, a agressividade que ali é descarregada contém a mesma força natural, o mesmo empenho em vencer a morte, pois toda vitória é sempre, em síntese, um triunfo da vida contra a morte. Ora, enquanto a guerra esportiva está limitada pelas quatro linhas do campo de luta e sob o controle de um juiz, essa agressividade é geralmente contida pelos cartões amarelo e vermelho (o de cor de sangue indicando, sintomaticamente, que o guerreiro está fora da luta, como se tivesse morrido, simbolismo que, evidentemente, não passou pela cabeça de quem escolheu essa cor, mas que seguramente estava guardado em seu mundo inconsciente). Com o hábito de os torcedores usarem a mesma camisa do seu clube (ou seja, também se prepararem para a guerra), o confronto entre torcidas, agravado pela instituição das torcidas uniformizadas, como desdobramento dos limites territoriais da tribo, tornou-se inevitável.
Agora não estamos mais diante de uma luta de onze contra onze, mas de um número incontável de guerreiros contra outro número incontável de guerreiros. Será de admirar que de uma guerra dessas surjam mortos?
A violência, portanto, podemos sintetizar, nada mais é do que a agressividade mal administrada.
Quando sabemos que todo ser humano é dotado de agressividade, temos duas alternativas para evitar que ela se torne violência: ou bem nos utilizamos das soluções radicais, como aquela proposta por Anthony Burguess, em seu livro Laranja Mecânica, ou bem tratamos de criar mecanismos de sublimação dessa agressividade, para que não se convole em violência, reeducando-se o ser humano. Os esportes, de modo geral, prestam-se a esse segundo propósito, sendo de todo evidente que os governos teriam um retorno bem maior se, em lugar de destinar dinheiro para a construção de novos presídios (quando destinam), aplicassem tais verbas na construção de centros recreativos e desportivos, até porque os profissionais do esporte estão hoje em dia sendo regiamente remunerados, o que constitui considerável estímulo à juventude. Menos trombadinhas e mais velocistas, em suma, poderia ser a máxima de uma tal campanha. O pífio desempenho de nossos atletas nas competições olímpicas (comparando-se ao de outros países, com população muito menor e, portanto, com menor possibilidade de selecionar os mais aptos), para ficarmos ainda naquele tema, mostra qual tem sido a opção de nossos governantes, no que diz com a administração da agressividade.
A confusão entre dois conceitos de mesma origem mas de conteúdos diferentes (agressividade e violência) tem levado muita gente a classificar negativamente o primeiro (que é algo construtivo), em razão dos danos advindos pela presença do segundo (que, de fato, está maculado por sua destrutividade intrínseca). A percepção da distinção entre eles, que se referem a realidades distintas, é o primeiro passo para que algo efetivamente se altere na realidade aqui focada.





[1]     Eduardo Galeano, El fútbol a sol y sombra, Editora Catálogos, Buenos Aires, 2005, p. 8.
[2]     No ritual católico o corpo e o sangue do Cristo, derrotado pelo mundo, é o alimento de que se vale o crente para incorporar em si as insuperáveis qualidades do “vencido”.