“Em 2009 o STF alterou sua jurisprudência com relação à possibilidade de cumprimento das penas logo depois da confirmação da sentença em segundo grau. Em 2009 isso mudou. Não concordei com essa posição e discordo dela até hoje.” (Ministra Ellen Gracie Northfleet, revista Veja, edição de 31/08/2011)
Lon Luvois Fuller, nascido com o século passado, tornou-se professor de Direito na Universidade de Harvard. Deixou um livrinho, que era um deesafio a seus alunos e que muitos estudantes brasileiros já foram instados a ler: “O caso dos exploradores de cavernas”. A hipótese por ele trazida no livro foi tornada realidade tempos depois, quando, havendo caído um avião com passageiros nos Andes, os sobreviventes passaram a alimentar-se com a carne dos falecidos. Como você agiria se lá estivesse?
Em outro livrinho, menos conhecido por aqui, Fuller inventa uma situação mais complexa: em certo país, o governo é assumido por determinado partido, que tem maioria absoluta no Poder Legislativo e muitos simpatizantes no Poder Judiciário. Ele poderia estar falando da Alemanha nazista, do México do século passado, da Cuba atual, da Venezuela ou do Brasil. Graças a esse poder, o tal partido faz aprovar leis curiosas, como aquela que exige dos cidadãos que, quando perderem seu documento de identidade, denunciem o fato às autoridades, em cinco dias, para cancelamento, evitando-se, assim, que alguém, contrário ao regime, se utilize desse documento para fins escusos. A desobediência a tal regra era sancionada com a pena de morte, a ser imposta num processo judicial, por estar em risco a segurança nacional.
Tal como aconteceu na Alemanha pós-nazismo, na Espanha pós-Franco e no Portugal pós-Salazar, com a morte do líder carismático e a eleição de novos governantes, aquelas leis foram revogadas. Ficou, porém, uma “herança maldita”: aqueles que se consideravam vítimas de leis injustas passaram a acionar o governo para pedir reparação dos danos sofridos e a punição daqueles que deram cumprimento a tais “leis injustas”, aí incluídos os juízes. No livro de Fuller, são consultados cinco membros do Legislativo, dando cada qual seu parecer sobre o assunto. Cabia aos alunos adotar uma dessas opiniões, refutando os argumentos das outras quatro.
O professor Dimitri Dimoulis, da Fundação Getúlio Vargas, vem de lançar a tradução do livro, acrescentando, por sua conta, a opinião de cinco juristas, tão fictícios como os deputados de Fuller, cada qual dando seu parecer sobre o tema. Ao finalizar o livro, Dimoulis recomenda a seus alunos: a partir da argumentação dos juristas, tome partido, aderindo a um dos pareceres. Mas, diz ele, “explique o porquê”.
E diz mais: “Defenda bem e detalhadamente a sua opinião. Só se esta for convincente a solução contará com o apoio dos demais”. O que me faz inventar um sexto jurista, o prof. Suarez, que pede licença para por sua colher de plástico nesse caldeirão de polenta.
Em primeiro lugar, quando se diz, como enfatiza o Prof. Satene, que não podemos falar em “violação do direito” sem antes definirmos o que entendemos por direito, pois “todos usamos esse termo mas cada um entende algo diferente”, está-se a dizer que nenhuma definição de Direito logra dizer exatamente o que é aquilo que se busca definir. O que me faz lembrar do estudante de Teologia que, passeando pela praia, viu uma criança a fazer um buraco onde, segundo revelou ao futuro santo, pretendia enfiar toda a água do mar. Agostinho, esse o nome do seminarista, deu um tapa na nesta e limitou-se a exclamar “É isso!”, referindo-se à impossibilidade de o homem conceituar Deus.
“Putas quid est Jus?” poderemos indagar, parafraseando o santo. Acaso imaginas poder entender o que é o Direito? Falas em Justiça como se fosse possível ao homem equiparar-se a Deus que, justo embora, a mais não ser, consegue julgar-nos com tal benevolência que temos a certeza de estarmos longe da Geena. Sendo, por hipótese, absoluto e detentor de toda a verdade, a ponto de desafiar seu julgador, permite a nossa inteligência o atrevimento de tentarmos alcançá-la. Como pode?
“Quid est Veritas?” indaguemos a qualquer juiz e tudo o que ele nos dirá é: “É aquilo que ficar provado no processo.” Vejamos, então, uma historieta: alguém é processado criminalmente sob a acusação de haver furtado a bolsa de A, a caneta de B e o relógio de C. Condenado pelo juiz singular, apela ao tribunal, sendo seu recurso submetido, como é a regra, a três juízes. O primeiro juiz, relator do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da bolsa, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; o segundo juiz, revisor do processo, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto da caneta, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações; e o terceiro juiz, vogal, como se diz no foro, reconhece que a prova demonstra apenas a ocorrência do furto do relógio, devendo o apelante ser absolvido das demais acusações. Quatro juízes chegam a esta verdade: ali está um ladrão. Ele, no entanto, deverá ser absolvido, pois nenhuma das três teses foi sufragada por, pelo menos, dois juízes do tribunal. Que verdade e essa?
Em segundo lugar, tenho também por inconsistentes os reclamos de minhas colegas do gênero feminino, como é de bom tom dizer hoje em dia. Se o caso sob julgamento alude apenas a homens é porque a hipótese versava sobre o comportamento de homens. O reclamo denuncia o complexo de inferioridade que tem a maioria das mulheres, incapazes de reconhecer as diferenças, físicas e psíquicas, existentes entre elas e os homens. Quem atribuiu ao casamento o nome de matrimônio (mater + munus) tinha em mente um fato social: com a união de um homem e uma mulher, é a ela que compete cuidar da prole e da casa. Ao homem compete obter os recursos para formar o patrimônio do casal (pater + munus). Isso, certamente, não foi inventado por uma só pessoa.
Por fim, last but not the least, tenho por risível a responsabilização, civil ou criminal, do homem que levou o marido de sua amante à morte. Se eu vir meu desafeto a atravessar a rua, certamente rezarei com todas as minhas forças a Deus pedindo-lhe que mande um caminhão em alta velocidade para tirar deste mundo aquele canalha. Se Deus me atender, acaso merecerei ser chamado de homicida? Eles que se entendam lá em cima (ou lá embaixo). Sendo Deus, por hipótese, o dono da vida, que nos empresta por prazo que só Ele conhece, se, naquele caso concreto, Ele a reivindicou manu militari, se assim posso dizer sem cometer heresia, certamente porque não confia nos nossos juízes, que culpa me cabe?
Tenho, Senhor Ministro, por equivocadas as conclusões de alguns deputados e alguns de meus colegas, exatamente porque partem de premissas inaceitáveis.
Para não alongar-me em demasia, digo que, a meu aviso, certos fatos sociais, embora produzidos por seres humanos, são apenas manifestações das forças da natureza, algo que as apólices de seguro chamam, atrevidamente, de “atos de Deus”. Um grupo de leões foge de um zoológico e caça pessoas, matando-as e matando, também, sua natural fome. Ondas do mar encapelam-se e invadem a praia num tsunami, matando gente e destruindo tudo o que encontram pela frente. Um doente mental empunha uma arma de fogo e mata, sem motivo objetivo algum, dezenas de pessoas. Um vulcão entra em erupção. Qual a providência judicial que restabelecerá a paz social quebrada por esses acontecimentos? Certamente nenhuma.
De outra parte, e para finalizar, qual a função do juiz criminal senão a de chamar para si o desejo de vingança diante de alguém que, mercê de seu atrevimento, causa danos a pessoas específicas ou ao conjunto dos moradores da sociedade? Ao menos é isso que as “pessoas de bem” esperam dele. Um psicopata, cuja insensibilidade ética (o que quer que seja isso) impede-lhe que tome consciência do mal que causa, por ação ou omissão, àqueles que com ele se relacionam, poderá ser impedido de assim agir? Ele tem escolha? Certamente não. O mesmo se diga com relação aos membros da classe política, que, como regra, confundem seus interesses particulares com os interesses da população que dizem representar. Se a finalidade da condenação criminal é a “ressocialização” dos criminosos, que medidas devem ser tomadas para que esses políticos abram mão de uma característica que parece ser-lhes própria?
O mesmo se diga dos arroubos patrióticos. Como é geralmente sabido, o hoje idolatrado Walt Disney era um patriota como tantos outros, que, por isso, não se negava a indicar ao senador Joseph McCarthy o nome de pessoas suspeitas de simpatizar com o comunismo. Muitos colegas dele perderam o emprego por isso. Durante a II guerra, os EUA tinham um espinho na garganta. Ou, melhor, dois: Getúlio Vargas, no Brasil, e Juán Domingo Perón, na Argentina. Ambos simpatizavam com o nazismo, valendo lembrar que, encerrada a guerra, um número enorme de nazistas fugiu para esses países, como Adolph Eichmann e Josef Menguele. Os EUA sempre procuraram cativar os países da América latina, desenvolvendo, para isso, o projeto da The Good Neighbor Policy, que criou e alimentou vários ditadores, cuja conduta jamais veio a ser questionada pelo alimentante. Naquela época (antes do fim da II Guerra Mundial), Disney foi chamado para ser um dos embaixadores desse estreitamento. Daí, por exemplo, o engajado filme "Alô Amigos". Os políticos não brincam em serviço.
Quando se diz que a possibilidade da pena de prisão inibe a prática de crimes faz-se uma afirmação que a realidade desmente. O criminoso cuja ação é descoberta, por força de mera falta de sorte, algo que os criminólogos chamam de “chiffre noir”, mesmo que venha a ser condenado e cumprir efetivamente a pena, na maioria dos casos não se “ressocializa”. Se for inteligente, na próxima vez procurará deixar menos rastros.
Em conclusão, tenho por absoluta perda de tempo voltarmos os olhos para o passado. Isso não elimina os efeitos de um tsunami nem traz de volta à vida quem daqui foi levado. É vivermos o presente, da melhor maneira que pudermos (o que quer que nos diga a Ética, a Religião ou a nossa consciência) e procurarmos criar condições para que os fatos desagradáveis do passado não se repitam.
Outrossim, a idéia de que, defendendo bem e detalhadamente a minha opinião e tornando convincente a solução proposta, contarei com o apoio dos demais juristas é também pura ingenuidade. O que a experiência mostra é que a vaidade, em tais discussões, fala mais alto, impedindo que a razão coteje com imparcialidade os argumentos opostos.
Sei que alguns dos meus colegas me chamarão de cínico. Eu prefiro que me chamem de pragmático.
A propósito, permita-me Vossa Excelência, Senhor Ministro, uma pergunta final: é possível fechar a boca de um vulcão?
show, Suannes, como sempre !
ResponderExcluirgrande abraço
Joe Canônico