Senhor Presidente
Eminentes pares
Ouvi com a máxima atenção os votos divergentes dos
ilustres relator e revisor no que diz com a fixação da pena cabível ao réu ora
sob julgamento, cabendo-me opinar sobre eles.
Preliminarmente, peço vênia para repetir as palavras de
um grande penalista brasileiro, o saudoso Heleno Fragoso, quando afirmava que é
preferível ter más leis com bons juízes do que maus juízes para aplicarem leis
boas, sendo certo que, como queria o emérito Glasson, “não basta que os juízes
sejam honestos; é necessário que eles provem que o são.“ Ou, dito de outro
modo, como o fez Warlomont, “a motivação não deve ser unicamente considerada
como algo que dá confiança na pessoa do juiz, mas como um privilégio concedido
a ele pelo legislador de justificar sua sentença diante de seus
jurisdicionados”.
Nosso Sidnei Benetti pondera que “a decisão realiza um
silogismo perfeito cuja premissa maior é a lei e cuja premissa menor são os
fatos, seguindo-se a extração da conclusão, que é a decisão judicial.” Mas
adverte: “E assim realmente é. Mas muitas vezes a matéria não se exaure no
exame da legislação, assim como, no sistema anglo-americano, a interpretação
não estanca na análise dos precedentes”. Longe está isso de ser uma tarefa
mecânica, diz ele. “A formação da decisão, em si, é ato aninhado nas
profundezas do sistema psíquico do Juiz, cujas trilhas, nos casos realmente
complexos, nem o próprio juiz possui meios de reconstituir”.
É esse amálgama de elementos tão díspares que constituirá
o fundamento da decisão. “O silogismo jurídico objetivo em verdade toma corpo
para o juiz especialmente no momento da concretização da decisão no escrito, na
motivação, com a qual obedece ao disposto na Constituição Federal e nos Códigos
de Processo, textos que, em verdade, apenas explicitam a necessidade de
fundamentação inerente à etiologia de qualquer julgamento”, diz o mesmo autor,
com sua autoridade de Ministro de um de nossos Egrégios Tribunais Superiores.
E por que isso deve ser assim? Porque, se “até os
ditadores, nos regimes discricionários, sentem o imperativo de expor ao público
as razões dos seus decretos, o que fazem, geralmente, antepondo-lhes consideranda
justificativos”, como dizia o Ministro Mário Guimarães, com maior razão isso há
de ocorrer em um regime democrático, em que os atos judiciais, tanto quanto os
administrativos, emanam de um agente do Estado que recebe seus proventos não só
para decidir desta ou daquela maneira, mas, principalmente, para dizer os
motivos pelos quais decide desta e não daquela maneira, como exige a
Constituição Federal no artigo 92, IX e X. E se ao prejudicado se assegura o
direito de impugnar os fundamentos da decisão, como diz ela no artigo 5°, LV,
como fazê-lo sem os conhecer? Como impugnar fundamentos meramente subjetivos?
Daí dizer o insigne Gaston Jèze: “Quando um agente
público está obrigado, segundo a lei, a motivar seu ato, deve fazê-lo, sob pena
de nulidade do ato. Assim, a ausência de motivos passa a ser um vício radical.
Essa lacuna faz supor que o motivo determinante não é um motivo de interesse
público”.
Além dessa suposição, há outra, igualmente relevante,
segundo o já referido Mário Guimarães: “A fundamentação é que dá a prova de
haver o juiz tomado conhecimento do processo. Ora, se não houve o estudo,
ludibriou-se o princípio das duas instâncias, que assenta na vantagem de ser a
causa examinada por juízes de hierarquias diferentes.”
No que diz com o presente processo, a lei penal não só
exige que seja aplicada a pena adequada ao caso como que seja fundamentada
adequadamente a fixação dela, demorando-se o julgador em três fases sucessivas,
quando ele levará em conta vários critérios, indicados no artigo 59 do
Código: “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do
agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o
comportamento da vítima.” “Na fixação da pena de multa”, diz o Código, “o juiz
deve atender, principalmente, à situação econômica do réu.” Em face de tais
elementos, pode-se, então, fugir do subjetivismo?
Se pudéssemos estabelecer
uma escala da culpabilidade, considerando a culpa mínima de grau 1 e a culpa
máxima de grau 10, quando saberíamos que determinado réu atingiu o grau 8 e não
o grau 5 de culpa? Os olhares de Vossas Excelências, pulando sucessivamente do
relator para o revisor já nos dão a resposta.
Como falarmos dos
antecedentes do presente condenado? Nasceu ele de uma gravidez desejada? Os
psicólogos, como sabemos, entendem ser tal antecedente fundamental para
tentarem compreender a conduta de alguém, máxime se desviante. Era filho único,
daqueles sempre mimados? Ou tinha vários irmãos, disputando com eles o carinho
talvez escasso dos pais? Como foi sua infância? Que exemplos teve na juventude?
Como foi sua iniciação sexual? Que escolas frequentou? Que empregos teve? Que
funções exerceu? Nada disso foi trazido a seus votos por relator e revisor.
Fala-se,
é verdade, que este réu já se envolveu com a polícia anteriormente. O que isso
significa? Maus antecedentes? Ou esse envolvimento conduziu a uma sentença
condenatória, ou a uma sentença absolutória, ou a sentença nenhuma. Se ainda
não houve sentença, isso não pode ser considerado mau antecedente, pois ele não
só é presumido inocente pela Constituição como pode até vir a ser absolvido por
negação de autoria. Se foi absolvido, ainda que por carência de provas,
continua inocente quanto a tal crime, não mais por mera presunção
constitucional, mas por força de uma decisão judicial. Se foi condenado, isso
também não pode ter influência nenhuma neste processo, pois a pena
correspondente àquele processo foi lá fixada e não pode ser alterada para mais,
o que ocorreria se aquela outra decisão fosse levada em consideração na fixação
da pena deste.
Aliás, a
chamada reincidência técnica, constante do Código Penal, é claramente
inconstitucional pois o plus aqui aplicado
sobre a pena base não decorreria dos fatos aqui julgados, mas dos fatos que
culminaram na sentença condenatória anterior. Isso é violação do antiquíssimo “Ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo fato”,
que os de língua inglesa chamam princípio do “no double jeopardy”, ou “a procedural defence
that forbids a defendant from being tried
again on the same (or similar) charges following a legitimate acquittal or
conviction”, que foi acolhido pelo International Covenant on Civil and Political Rights,
assinado pelo Brasil e entrado em vigor aqui aos 24 de Abril 1992 (clique aqui), com força de emenda constitucional, a teor do contido no parágrafo 3° do
artigo 5° de nossa Magna Carta, especialmente no que diz com o artigo 14,
inciso 7, do mencionado Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos.
Outrossim, que sabemos da
conduta do réu? É bom vizinho? Maltrata seus empregados? Participa regularmente
das reuniões de condomínio? Embriaga-se? Dá calote nos credores? Enfim, como se
relaciona com a companheira, com os filhos e com os vizinhos? Não sabemos.
Algum psicólogo foi ouvido
para nos indicar como é a personalidade do réu? É ele introvertido?
Extrovertido? Tende à depressão? À euforia? Seu humor é bipolar? Se soubéssemos
responder a essas indagações, isso nos levaria a aumentar a pena básica ou a
diminuí-la? Nem relator nem revisor esclareceram isso.
Para não esgotar a paciência
de Vossas Excelências passo para a pena de multa proposta por relator e
revisor, cujos valores também não coincidem. Diz a lei que se deve levar em
conta principalmente a situação econômica do réu. Quanto ganha ele em média por
mês? Quais os seus gastos médios? De que se compõe o seu patrimônio? Quantas
pessoas estão sob sua dependência econômica? Não tenho resposta para nenhuma
dessas questões.
Sendo assim, ou peço vista
dos autos, prolongando ainda mais o tempo já enorme da tramitação do processo, ou
dou um voto na base do “em face do jeitão do condenado, fixo a pena em tantos
anos, tantos meses e tantos dias”, ou, menos por justiça e mais por equidade,
invoco o velho e revelho in dubio pro reo
e, pragmaticamente, fixo a pena final no mínimo legal.
Aliás, por falar em
equidade, figuremos que a turma julgadora fosse composta de 7 juízes e, desses,
2 absolvessem o réu. Os 5 restantes discutiriam qual a pena justa, pois se teria
entendido que os juízes que o absolvem não podem “logicamente” fixar pena. Como
aqui se disse, “quem absolve não impõe pena”. Sendo isso assim, figuremos que,
enquanto 2 deles fixam a pena no mínimo, 3 fixam a pena no máximo. Destarte,
pela “maioria lógica” de 3 votos, a turma julgadora, composta de 7 juízes,
condenaria o réu a cumprir a pena máxima. Entretanto, se, estrategicamente, os
juízes que haviam absolvido o réu resolverem mudar o voto, o que podem fazer
até a proclamação do resultado final, para também condená-lo, certamente
aderirão aos que fixam a pena no seu mínimo legal. Resultado: a turma, por sua verdadeira
maioria de julgadores, imporia ao condenado a pena mínima. Eis o paradoxo: se
dois juízes da turma absolvessem o réu, ele receberia a pena máxima; se todos
os membros da turma o condenassem (o que, logicamente, é mais grave do que
absolver), ele receberia a pena mínima.
E aproveito o ensejo para deixar
o meu protesto no que diz com a competência originária deste Tribunal para
julgar processos criminais: nós aqui não chegamos ao mais alto grau da
Magistratura para estarmos a brincar de juízes originais. Nossa função social
deve ser, antes e acima de tudo, a de concretizarmos os preceitos
constitucionais, o que estamos deixando de fazer ao longo deste famigerado
processo, com prejuízo enorme a número incalculável de pessoas, ao perdermos
nosso tempo em análise de provas e cálculos matemáticos, operações que
gritantemente refogem de nosso carisma institucional, enquanto se acumulam na
secretaria recursos e mais recursos que só serão julgados quando este terminar
de ser julgado. Até porque, a meu enfoque, o contido no artigo 102, letras b e
c, é incompatível com o contido no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição
Federal, implantado em 2004.
É como voto.