À hora marcada, um senhor de meia
idade, com um eterno meio sorriso no rosto, boné xadrez na cabeça e impensáveis
óculos escuros sobre o nariz entraria na sala e provocaria um silêncio ainda
maior entre os presentes. Ele se sentaria numa cadeira tão dura quanto aquelas
outras, tendo como companhia duas senhoras, uma de cada lado, vestidas
pobremente, jeito de professoras primárias, que ali permaneceriam de pé durante
todo o tempo em que se desenrolaria aquilo que os entendidos ali chamam de
“trabalho”.
Ele tiraria os óculos, apoiaria o
cotovelo esquerdo sobre a mesa e ergueria a mão respectiva, sobre a qual agora
apóia o rosto, de tal maneira que seus olhos fechados fossem envolvidos pela
mão em concha. Ele
resmungaria algumas frases ininteligíveis que uma das senhoras traduziria em
voz alta e firme para os presentes, que, ao final, profeririam um uníssono
amém, que o Carlos Gustavo também repetiria, com seu sotaque suíço.
Quando o recém-chegado der um sinal,
uma das senhoras lhe porá na mão direita um dos inúmeros lápis que ali aguardavam
ser usados. A outra senhora então colocará uma das folhas à frente dele, que
passará a escrever mecanicamente linhas sucessivas, até preencher a folha.
Feito isso, a senhora da direita dele, com precisão suíça, retirará aquela
folha e porá no alto dela um número, enquanto a senhora à esquerda dele
colocará uma nova folha diante do escrevinhador mecânico, que preencherá também
esta em poucos segundos, operação que se repetirá por mais de uma hora,
substituindo-se o lápis gasto por outro de tempos em tempos. Sou testemunha
ocular disso tudo.
Quando chegar o momento, ele
depositará delicadamente o mais recente lápis em uso sobre a mesa, a indicar
que a sessão de psicografia terminou. Carlos Gustavo dará um suspiro de emoção
e aguardará que Chico Xavier seja levado da sala, para que se inicie a segunda
parte dos trabalhos, quando aquelas senhoras decifrarão os garranchos escritos
por ele. Serão mensagens de exortação, geralmente tendo ao final a
ininteligível, para Carlos Gustavo, palavra Emmanuel, palavra que lhe parecerá
haver lido há muito tempo na versão original da Bíblia, ou serão recados
transmitidos por espíritos que já desencarnaram, como ali se diz quando se quer
referir à morte de alguém, e que, em vida, correspondiam a filhos, pais ou
amigos de algum presente, que se emocionará às lágrimas quando identificar o
autor daquele texto e que certamente sairá dali menos aflito do que entrou.
Carl Gustav Jung começou a
interessar-se pelo espiritismo quando leu Dreams
of a Spirit Seer, escrito por um filósofo alemão respeitabilíssimo que era xará
do mensageiro divino que agora se manifesta ali, diante dele, algo que ele fatalmente
colocaria no rol de sincronicidades que estava a colecionar: Immanuel Kant.
Sendo também cientista, o suíço não deixaria de observar que aquilo que acabava
de presenciar pouco tem a ver com as sessões espíritas por ele freqüentadas na
Suíça e que têm como médium principal sua prima Helly, que, dentre outros
feitos, escandalizou a família dizendo que uma prima distante seria brevemente
mãe de uma criança negra. E eles nem sabiam que ela morava no Brasil, onde se
casara com um nativo.
Aliás, essa curiosidade científica
lhe valeu o rompimento de seu estimado mestre, mais que mestre, pai adotivo, o
ranzinza Sigismundo. “Misticismo nada tem a ver com ciência”, diria o mestre
vienense, porém em vão. As
experiências pessoais de Carlos Gustavo certamente o levariam mais para a seara
de Francisco Cândido Xavier do que para o grupelho de Sigismund Freud, composto
de bajuladores e oportunistas, que não terão dúvida alguma em apagar da lista
de convidados o nome de Carl Gustav Jung quando o rompimento se materializasse,
como se materializou. “Melhor a gente não se falar mais” (“I propose that we abandon our personal relations intirely”, se se
preferir a versão inglesa), disse o pai adotivo ao filho rebelde em carta curta
e grossa datada de 3 de janeiro de 1913 e que levou o terapeuta suíço a
conhecer de perto com quantas letras se escreve a palavra depressão.
Um encontro entre Jung e Chico
Xavier, quando ambos peregrinavam por este vale de lágrimas, não seria algo de
todo inimaginável, fosse na cidadezinha de Pedro
Leopoldo, em Minas Gerais ,
fosse em Uberaba, no Estado do Triângulo Mineiro, como dizem seus moradores,
para onde se mudara o vidente e onde veio a falecer. O primeiro nasceu em 26 de julho de 1875 e morreu em 06 de junho de 1961, enquanto o
segundo encarnou em 02 de abril de 1910, daqui partindo no dia 30 de junho de
2002, cumprindo sua conhecida profecia: “Vou partir num dia em que o povo
brasileiro estará tão feliz por outro fato que nem perceberá minha ida”. Entre
lamentar a partida do maior médium que o mundo conheceu e festejar a vitória
numa copa do mundo de futebol, qual brasileiro vacilaria antes de escolher?
Quando Chico começou a oficializar as visões que já tinha na infância,
Carlos Gustavo estava no auge de sua pesquisa científica, com menos de 60 anos
de idade. Ainda tentaria entender as coisas do além até depois dos 80 anos,
quando teria suspirado a um amigo próximo: “why
they don’t understand me?” Ele se referia aos espíritos do lado de cá.
Ao contrário do judeu Freud, o ariano Jung, que o outro,
levianamente, diria ser anti-semita, sem qualquer base em fatos reais, até
porque Jung merecia tanta confiança dos chamados “aliados” que foi, depois da
morte de Hitler, convocado para redigir uma carta que seria despejada, aos
milhares, sobre a Alemanha, concitando os germânicos a reconhecerem a derrota,
era um mente aberta. Tanto em suas memórias, como em seus sonhos e em suas
reflexões, ele dizia, para quem se dispusesse a ouvir, que tivera na vida
inúmeras experiências que a ciência não conseguia explicar. Que diria Freud se
ele lhe contasse que certa ocasião apareceram em sua casa uns espíritos que,
antes de invadir a sala, tocaram freneticamente a campainha da porta, o que foi
testemunhado pela cética Emma, sua esposa oficial? Os visitantes não estavam
para brincadeira e o obrigaram a escrever um livro sobre um tema que jamais o
havia ocupado cientificamente. Em apenas três dias estava pronta uma estranha
narrativa, escrita em linguagem arcaica. Era o “Sete Sermões”, cuja autoria
ele, tal como faz hoje a Zibia Gasparetto, tinha escrúpulos em atribuir a si
mesmo.
O desencontro entre ambos somente se deu porque o suíço, que
embora fosse um naïf, filho de um ministro protestante mais pobre do que ficara
Jó ao fim da disputa entre Deus e o Diabo, alçou vôos inimagináveis em sua
infância, graças ao dinheiro de sua esposa, que também era sua sponsor científica, preferindo ele deslumbrar-se
com os tapetes vermelhos cobertos de notas verdes que deslumbradas
norte-americanas lhe estendiam, quando cruzava o Atlântico para ser hospedado
por elas, do que descer ao exótico país do sul do continente americano, onde o
esperariam experiências com extravagâncias como o contato com o além, que, além
disso, lhe renderia honorários bem menores, se algum. Tivesse ele economia própria
e certamente poria em campo a esposa reserva, Toni, que, embora batesse um
bolão mais redondo do que a titular Emma, contentava-se, por amor à camisa
dele, a ficar no banco de reservas, ao lado de pernas-de-pau que não eram
dignas nem de amarrar o espartilho da amante oficial.
E olhe que fenômenos espíritas não
lhe faltavam no vasto currículo, como testemunhou o próprio judeu cabeça dura
quando, visitando o então filho adotivo, ouviu um estrondo dentro de uma gaveta.
Aberta a cômoda, o suíço exibiu-lhe uma espada feita do mais legítimo aço
nacional, que se espatifara naquele preciso momento em três pedaços, coisa que
até mesmo o cardeal Ratzinger não teria dúvida em mandar incluir no seletíssimo
grupo de fatos que são guardados por ele a sete chaves sob o rótulo de
“milagres”. Freud, na ocasião, examinou
demoradamente as evidências número um, número dois e número três mas se recusou
a ver ali algo maior do que um belo truque que algum Houdini houvesse ensinado
ao pouco científico pesquisador suíço. Dado seu inapelável veredito, limitou-se
a acender seu charuto, gesto que o outro interpretou como algo mais do que o
mero acendimento de um charuto. A que respondeu acendendo seu cachimbo, talvez
pensando nalgum orifício da mãe do judeu.
O fato é que Carl Gustav Jung,
talvez pelas experiências extra-sensoriais que tenha experimentado desde que se
conheceu por gente esquisita e ensimesmada, não dava às coincidências a desimportância
que os cientistas racionais lhe dedicavam a elas naquela época. Ao contrário
disso, quando aquela cliente de cabeça tão dura quanto as do Freud lhe narrou
que naquela noite ela havia sonhado com um escaravelho e ele tentou mostrar a
ela que aquele inseto continha uma mensagem a ser decifrada, pois correspondia
a um símbolo apreciado pelos egípcios, qual foi a reação dela? Uma risada tão
materialista quanto a que lhe daria o antigo mestre em situação semelhante. Aí
entra em cena o rodriguiano Imponderável da Silva: um barulho na vidraça da
sala onde estava a cliente e seu terapeuta, que, abrindo a janela, recolhe nada
mais nada menos do que um escaravelho, autor do tal oportuno barulho, que o
terapeuta entrega à cliente. “Foi este o inseto que apareceu no teu sonho?” A
moça quase desmaiou e a partir daí começou a entrar pra valer na terapia do
mestre suíço.
Assim é a vida, madame.
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