“A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou. Mas hoje, vendo que o que sou é nada, quero ir buscar quem fui lá onde ficou.” (Fernando Pessoa)
Tenho um
amigo que vive a reclamar que as editoras não se interessam pela publicação
de livros de novos autores, logo ele que deu a um de seus livros um nome
invejável: “Do amor e outras fraudes”. Um achado! Como diz o Luís Fernando Veríssimo,
para publicar um livro só é necessária uma coisa: ser autor famoso. Pois
tenho uma notícia ausvissareira para dar-lhe meu caro, para oficializar a
oportuna palavra que ouvi dias destes, híbrido que me não parece de má
origem. Coisa que o nosso colega Guimarães Rosa certamente avalizaria.
Conheci numa
dessas feiras de livros, que eu e você costumamos frequentar, a simpática
proprietária de uma editora sediada no Rio de Janeiro. Num casamento de
egípcio e latim, escolheu ela o nome da novel empresa, que você encontrará na
Internet, com uma relação de livros de poesia editados por eles. Sim, meu
caro amigo: poesia! O site nos informa que Íbis era a ave cuja cabeça
encimava o corpo do deus Thot, criador do alfabeto e padroeiro da literatura.
Nosso padroeiro, portanto.
Como o site não indica o endereço eletrônico
do departamento de distribuição dos livros, sou informado pela direção que
eles apenas editam o livro. Distribuição serão outros mil e quinhentos. Isso,
porém, não constituirá obstáculo capaz de desanimá-lo, se eu bem o conheço.
Tive uma tia
que vendia um produto de casa em casa. Ela saía pelas ruas de seu bairro, com
um carrinho de feira, carregando aqueles frasconetes de lactobacilos, que é
como aquilo se qualificava, se não me falha a já falível memória. Tocava a
campainha da casa e repetia o mesmo refrão, dias e dias. “Vende muito disso, tia?” Ela, com seu sotaque italianado, dizia
alguma coisa que eu mal compreendia, talvez palavrão, e continuava a
cantarolar alguma música do Carlo Gardel, como ela pronunciava, talvez fosse
ele algum cantor italiano, e não o francês Charles Gardès. O produto era
fabricado pelos japoneses, segundo ela me explicava, e tinha tais e quais
efeitos, que eu, menino ainda, não entendia muito bem. O que sei é que os
japoneses, com essa mania de imitar os norte-americanos, acabaram acabando
com o ganha-pão da minha tia Nena, pois em lugar de o seu produto ser vendido
um a um de casa em casa, passou a ser exposto, em pacotes de dúzia, nas
geladeiras dos supermercados. ¡Siglo veinte, cambalache problemático y
febril! Cantarolaria tia Nena.
Sou também
do tempo do “Ding, dong. Avon chama!” Lembra? Pergunte à mãe da tua mãe. Era um lactobacilo
preocupado com a parte de fora do corpo. O rádio e a televisão incipiente nos
pediam que fôssemos atenciosos para com a “moça do Avon”. Se ela apertar a
campainha de tua casa, mande a moça entrar, sirva um copo d’água, um
cafezinho e, se possível, compre o produto que ela está vendendo. Era o
reverso da história: os norte-americanos agora a adotar o sistema nipônico de
vender de porta em porta. Imagino isso hoje, quando os porteiros do
prédio são orientados a conferir as individuais datiloscópicas de quem nos
procura, se haveria como servir água ou cafezinho à tal moça. Vá a gente
saber se aquilo não é coisa do PCC.
Outra
invenção dos norte-americanos era a venda de umas panelas de plástico, se
posso dizer assim, também oferecidas de casa em casa. Criava-se no
bairro uma espécie de irmandade do bem e as senhoras, geralmente tão
desocupadas enquanto os maridos davam duro no chamado trabalho e enquanto a
televisão não se tornasse a coisa insuportável que se tornou, passariam a
fazer algo de útil, que lhes proporcionaria algum trocado para o batom ou o
rouge, se é que a senhorita que me lê sabe do que estou falando. Havia um
curso preparatório que deveria ser uma autêntica lavagem cerebral, tal era a
modificação operada nas que o freqüentavam. Você ia a uma missa de sétimo dia
e lá estava uma amiga pronta a conversar sobre o tal produto, falando,
baixinho é claro, das maravilhas da tal quinquilharia. Se você se encontrasse
com ela na feira, ou na padaria, ou na quitanda, era tiro e queda: a tal
vendedora parecia esses moços neo-convertidos que, de Bíblia na mão, vêm nos
teus calcanhares com o refrão “convertei-vos!”. Pois os vendedores das tais
panelas de plástico tinham esse mesmo tipo de comportamento. Descobri que o
chefe deles utilizava do mesmo sistema de avaliação e incentivo utilizado
pela turma do A.A.: à medida que você atingisse um número de vendas por mês,
recebia um bottom de outra cor. E todos eles se cruzando com
seus invejáveis bottons coloridos na lapela, como se vender
panelas de plástico fosse tão meritório como livrar-se do álcool.
Pois hoje
não mais nos propõem vendermos lactobacilos, nem panelas de plástico, nem
creme anti-rugas, nrm suplemento alimentar. O que a modernidade nos propõe é
que saiamos por aí, a empurrar carrinho de feira pelas calçadas arrebentadas
que temos em nossa infeliz cidade, desviando-nos dos cocôs de vários tamanhos
e formas que os cachorrinhos de madames e cavalheiros se encarregam de
espalhar por todo canto dia e noite, a oferecermos, de porta em porta, nossos
livros de poesia.
Sonhador que
sou, vejo meu prezado amigo a oferecer o produto falando naquele bocal que
nos aguarda na parede das casas. Tenho aqui um “lânguidas lágrimas de serena face/ que jorrais suaves por meu rosto
gasto...” Ou então tenho um mais alegre: “cômodos lazeres/ placidez ebúrnea/ cômodos prazeres/ sensatez
ausente ...”
Aliás, ia me
esquecendo, o site da mesma editora nos recorda que Íbis era um dos muitos
falsos nomes de que se valia o nosso tímido colega Fernando Pessoa, este
sendo o apelido quando enviava cartas de amor à sua amada Ofélia Queiroz.
Lembrança mais do que oportuna, pois o nosso Fernando António Nogueira
Pessoa, que se escondia sob vários disfarces, como Alberto Caieiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, o do Livro do Desassossego, também
tinham lá seus problemas para distribuir seus poéticos livros.
Consta que
nossa colega Cecília Meireles, tendo ido a Portugal, para proferir
conferências na Universidade de Coimbra, desejou conhecer o poeta de quem se tinha
tornado admiradora e que talvez precisasse de uma mãozinha brasileira. Marcou
um encontro com os heterônomos todos, que se daria ao meio-dia na praça onde
hoje lá está ele sentado, mesmos óculos, mesmo chapéu, mesma gravata e mesmo
terno, agora tudo isso brônzeo. Ela esperou até as duas da tarde, tempo mais
do que suficiente para que o Fernando reunisse todos eles e lá fossem todos.
Cansada de esperar, Cecília voltou ao hotel e ali encontrou um exemplar do
livro Mensagem e um recado do poeta: não havia comparecido porque, consultando
os astros, soubera que os signos dela não combinavam com o de nenhum dos seus
heterônomos. E os astros tinham toda razão: não houve mais encontro algum,
mesmo porque no ano seguinte o Fernando Pessoa faleceu.
E, se isso
te consola, só em 1982 foi publicada a edição definitiva do Livro do
Desassossego, que o nosso colega lusitano havia escrito durante a vida, é
claro, que se findou, como sabeis, em 1935, quando nascias.
Tudo muito
romântico, como vês.
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01 novembro 2013
Românticos
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