“O deputado federal Paulo
Maluf foi condenado nesta segunda-feira (4) no Tribunal de Justiça de São Paulo
a pagar uma multa de R$ 42,3 milhões por desvios que ocorreram na construção do
túnel Ayrton Senna, entregue à população em 1995.” Dos jornais desta semana
“O Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) decide nesta semana se abre processo disciplinar contra o
presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Mário Alberto Simões Hirs, e sua
antecessora, Telma Laura Silva Britto, acusados de irregularidades que teriam
causado prejuízo de R$ 448 milhões aos cofres do Estado.” Dos jornais desta
semana
Leio praticamente todos os
dias nos jornais que foi realizado ontem aqui, hoje mais ali, um rombo nas
contas públicas que rendeu aos autores milhões de reais. Fico imaginando o que
eu faria se as minhas condições de saúde me permitissem. Entraria, certamente,
numa dessas, acertaria a vida de meus netos, seguindo o manual do Maluf
(“Desafio provarem que existe alguma conta em meu nome em
algum banco estrangeiro”) e, graças ao nosso Supremo, se algum dia houver
alguma condenação definitiva contra mim, minha família entregaria ao juiz de
execução um frasco com minhas cinzas. E que faça bom proveito.
Quando transmito essas
idéias a alguns amigos e colegas, tão sobreviventes de outros tempos quanto eu,
eles fazem uma cara de horror. “E a moral, meu caro? Para que serve a Ética?”
Acabo de ler dois livros
muito ilustrativos: são as biografias de Henrique VIII e de sua filha Elizabeth
I, a tal que se apelidou “Virgin Queen”, na certa porque não haveria, como
jamais houve, quem lá fosse conferir se essa virgindade era real e depois saísse
à rua denunciando o engodo. Virgem e namoradeira como ela só. Tudo muito
platônico, certamente.
Muito embora a Magna Carta Libertatum, que é de 1.215, impusesse
aos soberanos ingleses a obediência ao “devido processo legal” quando se
cuidasse de julgar e executar pessoas, nem o rei, que governou de 1.509 a 1.547,
quanto ela, sua filha, que ficou mais tempo do que ele no trono, deixavam de enviar
para o cepo (nobres não eram enforcados, como ocorria com a gente comum)
inúmeros inimigos tão só pela acusação de traição, mesmo quando o plano nem
chegava a esboçar-se. Inimigos? Além de duas de suas esposas (Ana Bolena e
Catarina Howard), aquele rei mandou decepar a cabeça de seus auxiliares diretos
como aquele que todos consideravam seu melhor amigo, Thomas
More, homem cultíssimo e de moral ilibada, como se diz em Brasília, e que
hoje é conhecido como Santus Thomas Morus; ou Thomas Cromwell, considerado o
melhor de seus ministros; e até mesmo um bispo (John Fisher). Elizabeth, que
sempre se declarou avessa à pena de morte, moderou com o tempo, é verdade, seus
impulsos agressivos. Quando sua prima Mary, que era católica, rainha da Escócia
e sua prisioneira, foi acusada por alguns nobres de estar conspirando contra a
rainha, para assumir seu lugar, ela argumentou, com base na Magna Carta, que um
rei jamais deveria ser julgado na Inglaterra, pois tal autoridade somente
poderia sê-lo by his peers, ou seja,
por seus pares. Que pares julgaria a rainha da Escócia? Como seus ministros
temiam uma revolta dos católicos, um deles, Sir John Davison, redigiu uma ordem
de execução e enfiou no meio dos papéis de rotina que a rainha iria assinar sem
ler. Resultado: Mary foi decapitada e Sir John proibido para sempre de
freqüentar a corte. Milagrosamente, sua vida foi poupada.
Um de seus inúmeros
“casos” foi com Robert Dudley, que, no entanto, veio a casar-se com outra
mulher, o que enfureceu sobremaneira a rainha. Pois o casal teve um filho,
Robert Devereux, que se tornou conde de Essex. Nada obstante a diferença de
idades, ela convocou o conde para ser seu auxiliar direto, encarregando-o de
cuidar de sua montaria. Ele, porém, preferia farrear (com outras) e, nas horas
de folga, participar de alguma batalha, que, ou se gabava de haver ganho, ou
acusava seus homens de haverem fracassado. Quando ele foi advertido pela rainha,
saiu pelas ruas gritando que estava sendo injustiçado pela rainha a quem tanto
servira. Um escândalo.
Resultado: com seu enfant gaté desmandando-se publicamente,
não restou a ela alternativa: mandar julgá-lo por traição, quando foi condenado
à morte. Ele tinha 35 anos e ela quase 70. Além de ter de suportar o notório
desprezo que o rapaz lhe dedicava, além dos abusos por ele cometidos, certo de
que seria por ela perdoado, mandar decapitá-lo foi demais até para ela, que
caiu em enorme prostração e morreu dois anos depois daquela execução.
E a ética britânica como
ficou?
É claro que os tempos
agora são outros. Hoje os futuros reis da Inglaterra estudam e trabalham quase
como os filhos de famílias comuns (famílias abonadas, é claro). O mais recente
candidato a rei foi batizado sem praticamente pompa alguma, depois de ser
fotografado saindo prosaicamente da maternidade no colo da mãe. Só faltou a
família ir para casa de taxi. Evidentemente, não se chegou a isso por passe de
mágica, mas ao longo de um penoso processo de aprimoramento das normas de
convivência.
Nossa ética judaico-cristã
chegou a tal ponto que nem a paciência do Papa
Francisco suportou certos desmandos. Quantos papas foram necessários para
que alguém se lembrasse do sermão
da montanha?
O pensador polonês Zygmunt
Bauman, autor de inúmeros estudos sobre a chamada “Ética pós-moderna”, nome,
aliás, de um de seus inúmeros livros, indaga: a ética realmente morreu ou se
ainda existe, sendo apenas necessário que seus grandes temas sejam revistos e
tratados de modo inteiramente novo?
Como pode ser isso?
Confesso que não consigo
distinguir muito bem isso de “modernismo” e “pós-modernismo”. Na realidade, o
chamado modernismo, no campo da Ética, tem muito a ver com o fenômeno que
muitos pensadores chamam de “a morte de Deus”, para designar um período em que
as religiões tradicionais já não são levadas a sério como outrora. Se
prestarmos atenção tanto no Código Hamurabi,
como nas Tábuas da Lei quanto
nos chamados Dez
Mandamentos, veremos ali claramente o objetivo de regrar a vida social das
pessoas, ainda que sob a ameaça do castigo divino. Ausente Deus, quem
fiscalizará os homens?
Com o ser humano descendo
à condição de um primata
superior, é para perguntar onde encontrará ele base para definir sua vida
ética.
Bauman lembra que outrora
a escolha era entre duas afirmações opostas: “os seres humanos são
essencialmente bons e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua natureza”
e “os seres humanos são essencialmente maus e devem ser prevenidos de agir
segundo seus impulsos”. Certamente, no primeiro time jogava A.S. Neill, criador
do Colégio Summerhill, onde as
crianças eram deixadas livres, para serem elas mesmas, segundo seu refrão. Já o
velho Freud certamente não aprovaria isso. “Não se deve cogitar da repressão total das tendências agressivas do homem.
O que podemos tentar é canalizar essas tendências para outra atividade que não
seja a guerra” teria
dito ele.
O que caracteriza os tempos atuais, diz o professor polonês, é a
liberdade generalizada dos costumes. Veja-se, digo eu, o que se passa no campo
da sexualidade, que sempre foi visitado pelos moralistas, até mesmo nos
mandamentos “de Deus”. Algo visto como um mal necessário. Hoje em dia, nesse
campo simplesmente não há padrão de conduta.
Veja-se o que ocorreu com o casamento. É ele tipicamente uma
celebração religiosa. O “crescei e multiplicai-vos” sugere que o par deve ter
sexos diversos. Caso contrário, como multiplicar? O Estado, no entanto,
apropriou-se indevidamente do nome para batizar com ele um contrato civil de
convivência, que poderíamos chamar de “união heteroafetiva”. Paralelamente, a
homossexualidade, que, de atividade criminosa, como soube Oscar Wilde,
tornou-se aceita e até mesmo incentivada, com direito a paradas coloridas pelas
ruas das capitais, adquiriu status simplesmente impensável, ao ver a união
homoafetiva, ou seja, o disciplinamento do contrato civil que liga duas pessoas
do mesmo sexo, elevado a celebração religiosa, equiparável ao casamento. Não se
trata de desmerecer esse tipo de união, que, como contrato, deve, de fato, ser
regulamentado pelo Estado. O que é abusivo é esse mesmo Estado, que prometeu
respeitar os credos religiosos, aproveitar-se de um instituto tão importante
que os católicos o reputam um sacramento, para dar-lhe conotações que
extrapolam do modelo original.
Falar do campo político é o mesmo que enxugar gelo. Nenhum
candidato, por mais inexpressivo que seja o cargo eletivo almejado por ele,
ganhará durante o seu mandado honorários que compensarão minimamente o que ele
gastou para eleger-se. Se essa premissa é inquestionável, como de fato é, dela
deveremos retirar suas naturais conseqüências, uma das quais sendo: que
capitalista se disporá a financiar a campanha de algum desses candidatos se não
tiver em mente recuperar o que gastou, elevado a algumas potências? Não é, por
certo, coincidência, que os maiores financiadores de campanhas eleitorais sejam
as grandes empreiteiras, as quais, após a eleição, saem vencedoras de
concorrências que, nem sempre, se destacam pela lisura.
Estamos, de fato, vivendo um clima de liberdade individual como
jamais houve, o que, no limite, leva a um individualismo generalizado. E como
fica a ética se, como diz Umberto Eco, ela surge quando eu descubro o outro,
aquele que é diferente de mim? Por outro lado, as mil formas da globalização
condicionam essas pessoas livres a seguirem um mesmo figurino, por vezes
imperceptivelmente. Nem as crianças escapam disso, pois as meninas, por
exemplo, têm a liberdade de escolher entre vários modelos de uma mesma boneca.
Para não falarmos nos joguinhos eletrônicos e na transformação do telefone
celular e as bugigangas nele encartadas em artigo de extrema necessidade.
Liberdade?
Daí dizer Bauman, citando Erich Fromm: “Em nosso esforço de escapar
da solidão e impotência, estamos dispostos a nos livrar do nosso eu individual,
quer por submissão a novas formas de autoridade, quer por conformação compulsiva
a padrões aceitos”.
Mestre Adauto. Li o seu texto e a parte que mais gostei é aquela do humor macabro sacado das cinzas.
ResponderExcluirUm abraço