13 maio 2008

O Tempo


“Todos querem viver para sempre. Mas têm horror à velhice.”

(Cícero)

Se você reparar bem, o tempo não existe. Qual o cientista que conseguiu defini-lo? Nenhum. Dizer que o tempo é uma relação entre o antes e o depois é apenas trabalhar a partir de duas palavras, cujo conceito foi estabelecido pelo ser humano. Que é o antes? Que é o depois? Antes de quê? Depois de quê? O agora é esse momento que acaba de passar. Ou seja, que não existe mais.

Ouço pessoas dizerem “farei tal coisa quando tiver tempo”. O tempo, portanto, para essas pessoas, é uma coisa que se tem ou não se tem, como uma frieira ou um automóvel. Onde se adquire? Como se conserva? Onde se guarda? É evidente que uma frase dessas não quer dizer coisa nenhuma. Ou quer dizer: eu não vou fazer agora. Esse “eu não vou fazer” deveria ser “eu não quero fazer” ou “eu não posso fazer”. Entretanto, como somos todos uns covardes, inventamos circunlóquios, palavra que nem sei bem o que significa, para não dizermos que temos medo de tentar. Ou que estamos convencidos de que não temos capacidade para fazer aquilo que ousamos imaginar que poderíamos fazer.

Disse-me o psiquiatra Paulo Gaudêncio que uma cliente foi procurá-lo para falar do complexo de inferioridade que a atormentava e não lhe permitia ousar em nada. Ela queria, em suma, que ele desse um jeito na acomodação dela. “E quem disse à senhora que isso é apenas um complexo?” Acho que ele perdeu a cliente. Azar o dela. Ele certamente lhe demonstraria o mau uso que ela estava fazendo do tempo, o que quer que fosse isso.

“Quando as crianças crescerem eu me separo de meu marido” ouve-se com freqüência. Não seria mais adequado dizer “eu não tenho coragem de assumir a minha vida”? O tempo de decidir é agora. É claro que há quase sempre variáveis que devem ser levadas em consideração. Uma mulher, cliente do mesmo Paulo, casada, começou, por nada, a fazer curso de inglês. Mas, com um casamento complicado, sem filhos, ela resolve estudar inglês? “É para espairecer o espírito”, dizia ela ao marido. Quando ela conseguiu dizer “I love you” e “goodbye, my dear” ela comprou uma passagem de avião, a prestação, só de ida, e se mandou para os Estados Unidos, onde construiu uma vida sem aquele chato do seu marido, que até hoje não entendeu nada. Evidentemente, quando ela se decidiu a fazer o curso de inglês não tinha consciência de que já havia decidido abandonar o marido e o país para recomeçar a vida longe. Assim são tomadas muitas de nossas decisões. Só tomamos consciência delas depois de muito tempo. Eis aí mais uma prova de que o tempo não existe.

Lembro-me de uma mulher de pedreiro que me procurou, nos tempos do Departamento Jurídico do XI de Agosto, dizendo o diabo do marido, aquele imprestável. Eu, embora ainda sem a experiência que o tempo, mesmo inexistindo, nos traz, disse-lhe mais ou menos isso: a senhora não é obrigada a morar com ele. “E se Deus o livre ele cair do andaime, para quem vai ficar a aposentadoria dele?” disse-me ela, pragmática a mais não poder. Quantas mulheres não diriam a mesma coisa se dissessem o que pensam de fato quando fingem estarem preocupadas com os filhos e o futuro. Que é o futuro?
Aliás, quem foi ou é juiz de família conhece bem o que se esconde por trás do interesse do pai ou da mãe em ter a guarda do filho, que será, quase sempre, cuidado pela empregada ou pela avó paterna ou materna, pois o detentor da guarda não tem tempo para a criança. “Quem efetivamente ama o filho pensa primeiro nele” eu disse a vários pais e mães que tentavam convencer-me de que estavam criando mil dificuldades para o ex-marido ou a ex-esposa em nome do bem-estar da criança e não por mera vingança, como é a regra. Não me lembro de ter visto um único caso em que o casal estava, de fato, empenhado em construir um futuro melhor para o filho. O fato é que, em nome desse momento que ainda não veio e nem sabemos se virá, deixa-se de preocupar com o momento presente. É isso bem próprio do cristianismo: sofra agora e resigne-se hoje porque no futuro haverá a compensação. Ou seja, você, velhinha e caquética, encontrará finalmente o homem de seus sonhos e será feliz para sempre. Num asilo.

Mas eu falava do tempo, e ele, que não existe, vai passando e logo a crônica chega ao fim. O amigo Cleanto me presenteia com a gravação de uma música belíssima, que fala das coisas simples. E lá pelas tantas, diz a letra que “El amor es simples y las cosas simples las devora el tiempo”.
A imagem do tempo como um devorador é bem própria do budismo. Repare na conhecida figura da deusa de quatro braços, esposa de Shiva. Nos pés de Kali há um ratinho, que significa o tempo, o que devora as coisas. É isso um convite à nossa reflexão, pois o cristianismo também nos adverte que seremos idiotas se nos preocuparmos com o futuro. Tanto orgulho, tanta ambição, tanta sacra auri fames. Entretanto, quem garante que amanhã você acordará?

Está na carta de Tiago, capítulo 4, versículo 14: “Vós dizeis que hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá ficaremos um ano, negociaremos e ganharemos dinheiro. No entanto, não sabeis o que sucederá amanhã Que é a vossa vida?” E Mateus, no versículo 34 do capítulo 6 diz o mesmo: “Não vos inquieteis pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo”. E acrescenta a famosa frase, popularizada por ninguém menos do que o Renan. Falo do senador brasileiro, não do autor da Vida de Jesus. Eis a frase renaniana: “Basta a cada dia suas atribulações.” Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo, completa o evangelista.

Tempus fugit nos dizia um belo relógio de pé situado na sala das becas do Tribunal de Alçada Criminal, uma sala curiosa cuja parede era coberta com armários individuais, cada um com o nome do respectivo juiz numa plaqueta. Quando era promovido, morria ou se aposentava alguém, a plaqueta do juiz que ocupava posição de antiguidade imediatamente inferior à dele, caminhava uma casa, passando a ocupar o local que era antes ocupado pela plaqueta do juiz agora ausente. E esse caminho da plaqueta tinha a direção da porta, junto à qual ficava o armário relativo ao juiz mais antigo na casa, a indicar que o próximo passo o levaria à rua. Ou à morte. Os dois pêndulos, de certa forma, diziam isso, naquele movimento de ir daqui para lá e vir de lá para cá. Várias vezes parei diante dele, que não sei se ainda estará lá, e indaguei dele o que ele queria dizer ao lembrar-nos disso. Ele, filosoficamente, se limitava a repetir tempus fugit, tempus fugit, tempus fugit.

8 comentários:

  1. poeta Adauto!

    acho lindo, lindo "O Tempo"..
    parabéns por tua iniciativa!
    grande alegria te receber nesta "blogosfera".

    abraço de admiração!

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  2. Meu sábio amigo: o texto de muito bom gosto nos leva a refletir sobre a relatividade da vida, em especial, sobre o tempo. Vindo de você, sei o quanto isso representa, até porque pertenço ao seus seleto grupo dos que foram obrigados a pensar nisso. Parabéns pelo bom gosto, pela distribuição das imagens, pelas cores utilizadas. Revelou-se, além de tudo, um WebDesign de mão cheia. Abraços!!!

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  3. É presente de aniversário de 1 ano da sua cirurgia ? Parabéns, pai: pela alegria de viver, pela modernidade e, porque não dizer, pelos ótimos filhos que tem (rs).
    É um exemplo de que a sua cabeça é bem mais nova que a sua certidão de nascimento... Aprendeu Norueguês com mais de 60 anos e, agora, está fazendo seu próprio Blog, com 70 anos... Viva a Juventude.
    Beijos
    Sua filha-do-meio, Peti

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  4. Pai, um dia ainda serei tão jovem quanto você. Parabéns!! Adorei o site e estou aprendendo a me cadastrar pra te escrever.
    Gostei muito. Por que você não publica aquela linda crônica que escreveu sobre Cuba e Fidel.
    Um beijo orgulhoso de sua filha que não vai dizer se é mais velha ou mais nova que a outra.
    Claudia

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  5. E também não vamos esquecer que:
    "O melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui..."
    Adorei sua crônica e o blog.
    Beijos
    Heloisa

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  6. ...sou e serei sempre sua fã...
    parabéns pelo blog!
    bjs Thaís

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  7. Querido Mestre!

    Em minhas andanças nessa vida, em determinada curva do caminho, topei com o Mestre Adauto, e desde então os meus dias tem sido mais felizes. Eu, o Mano Meira, o Ontõe Gago, o Zé Preá, e por último, o Francimar, volta e meia, andamos 'terciando o ferro' em disputas cordiais, sobre os temas mais variados no saite 'Migalhas', em cujo mesmo endereço, o Mestre nos honra com as ideologias que defende em sua coluna semanal "Circus". E desse convívio quase que diário - de puro aprendizado, respeito, admiração e afeto - está a gênese da segunda palavra mais bela do mundo. A primeira, todos sabemos, é saudade, e a segunda, estamos descobrindo juntos querido Mestre, é amigo; sendo que, a primeira, é o sentimento sublime que assalta a alma desse índio xucro, ... em espreita dos mais sinceros votos, de que todos os seus sonhos se realizem, e que tenhas cada vez mais energia e boa saúde, para continuar ensinando o 'vôo das borboletas', e que elas se transformem em andorinhas, e voem ligeiro em direção ao Sul. Cleanto Farina Weidlich - Carazinho / RS.

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  8. Amigo Adauto:


    Acessando seu blog,
    percebi sem "tristeza" que "O Tempo fugit".
    Com
    "cidadania e fé", fico torcendo para que a
    vítima daqueles poderosos
    "Olhares" logo se
    recupere e possa deixar o acostamento.
    Estou certo
    disso, com fundamento na
    beleza dos seus versos.

    Abraço
    Francimar.

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