16 junho 2008

Gralhas


“Love not! Love not!
Ye hopeless sons of clay;
hope's gayest wreaths are made of earthly flowers,
things that are made to fade and fall away,
here they have blossomed for a few short hours.” (*)
Caroline Elizabeth Sheridan Norton


A escola ficava na Bigdoy Allé, rodeada das residências dos embaixadores estrangeiros, que talvez preferissem a calma de Bergen e seus fjords à agitação de Oslo e a invasão dos estrangeiros que tanto descaracterizavam o aspecto da capital. As crianças passavam todos os dias junto ao muro da casa grande, onde tremulava a bandeira colorida, que despertava a atenção daquele bando de gralhas, grossitando todas ao mesmo tempo. Stars and stripes forever, como se dizia além do oceano, lá onde Leif Ericson estivera muito antes de ali chegar Cristóbal Colón.
Na classe não lhes haviam advertido que além daquele muro era território estrangeiro, pois não lhes ensinavam ainda essas coisas de direito internacional e outras bobagens que os adultos inventam para criar barreiras entre si. Sabiam apenas que as árvores em seu país não tinham dono, pois o allemannsretter (1) assegura a todos poder entrar no terreno alheio e colher o que a natureza ali plantasse. Res nullius, res omnium, diriam elas, se soubessem aquela língua estranha que jamais haviam ouvido alguém falar por ali. E da qual ninguém necessitava para ser feliz.


Naquele dia, na classe, a colega morena exibira ao menino loiro um sorriso diferente daquele que costumava entregar aos outros colegas, sempre gentil e tímida. Era preciso retribuir-lhe a especial atenção. Mas como?


Ali estava agora a oportunidade de mostrar sua valentia, andando sobre o muro alto da casa grande, à maneira de um nefelibata, palavra que ele jamais ouvira na vida. E jamais ouviria.


Sob os olhos espantados das demais gralhas, o menino atravessou a rua, veio correndo e conseguiu, com salto felino, alcançar o cimo do muro pretendido. Com algum esforço pôs-se de pé lá em cima, abriu os braços em cruz e digeriu gostosamente o aplauso dos colegas. E, mais do que aplauso, o sorriso especial da menina morena.


E o sorriso foi o estimulante que o fez caminhar, lentamente, o estreito caminho que escolhera para mostrar à menina que era, de todos aqueles machos, a gralha que a natureza havia reservado para ela. Que ainda não havia visto toda sua valentia, pois tinha ainda de alcançar o cetro comprobatório de seu triunfo. Saltar do muro para dentro do terreno, colher frutas silvestres e, supino esfoço!, com o troféu na mão, galgar de novo o muro, trazendo à rainha o butim de sua pilhagem, viking romântico.


A vida, porém, é feita de surpresas, aprendeu ele, ao perder o equilíbrio e cair do lado de lá do muro, despertando um oh! dos colegas e um ar de preocupação no rosto da menina morena.
Do outro lado do muro, o receio dos adultos diante de questiúnculas que vinham ocorrendo além, muito além daquelas terras geladas e que poderiam vir a molestá-los algum próximo dia, fê-los cercarem-se de cuidados desdobrados. E aquilo que se mostrava bosque era, na verdade, um campo minado, preparado para o pior.


O fato é que as gralhas não souberam explicar aos policiais chamados, falando todas ao mesmo tempo, se o grito veio antes ou depois da explosão. O menino loiro, única pessoa autorizada pelas circunstâncias a esclarecê-lo, jamais poderá fazê-lo. E isso era o que importava.


E a menina morena ficou sem as frutas silvestres, substituídas por uma dor profunda que lhe agulha o peito sempre que vê, na classe, aquela cadeira vazia.
_________________________

(*) Em tradução livre:
“Jamais ame alguém! Jamais ame alguém!
Ó inúteis seres de barro,
as alegres grinaldas da esperança são feitas de flores efêmeras,
coisas destinadas a esmaecer e morrer
e que florescem por apenas insignificantes horas.”
(1) Na Noruega, toda pessoa pode colher frutos silvestres em qualquer terreno, desde que seja para consumo imediato.

Um comentário: