22 outubro 2009

Velhice

Falo do Carl Gustav Jung tão freqüentemente que algumas pessoas já danam a censurar-me. “Pra você é Jung no céu e Jesus Cristo na terra”, exageram. Ainda agora acabo de comprar a aplaudida biografia escrita pela Deirdre Bair, esse o incrível e indecorável nome da moça. Cuida-se de “uma obra imensa, repleta de rigorosa pesquisa histórica, sobre uma vida cheia de coragem, criatividade, decepção, sofrimento e glória”, diz o Carlos Byington. Além de ser pai da cantora Olívia, ele é um dos grandes psicoterapeutas junguianos do Brasil, na contra-capa do livro. Tenho eu culpa se o homem era um sábio e, como diz minha mulher, altamente prospectivo?

Pois está lá num depoimento à Aniela Jaffé, sua ex-paciente e depois renomada colega, um desabafo dado por ele quando já octogenário: “Eu já estou conformado em ser um póstumo de mim mesmo”. Ele, de certa forma, antecipava aquilo que o Ângelo Bonetti, excelente violinista de Araraquara, me dizia quando eu lá judicava: “Meu caro doutor, acho que está na hora de eu morrer. Passei a vida toda envolto pela música, desde criança. Toco meu violino todos os dias, desde que me conheço por gente. Bach, Vivaldi, até Paganini. Quando ligo a televisão, porém, eles exibem uns moleques fazendo um barulho dos infernos dizendo que aquilo é música. E eles são aplaudidos. Só morrendo!”

Vejam se o Jung não é eterno: “It is difficult to be old in these days” desabafou ele numa carta a um amigo. E ele tinha apenas 65 anos de idade! Imaginem como foram os 20 anos que ele ainda iria viver.

Norberto Bobbio, outra de minhas paixões, fala da própria velhice. Mas, que é velhice? “Aqueles que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de sessenta anos. Hoje, um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, porque chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. Já o octogenário, salvo exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática mas fisiológica, começa quando nos aproximamos dos oitenta que, a final, é a idade média da vida”.

Serão essas palavras válidas em nosso país? Eu não tinha mais de 50 anos quando, parando o carro junto a um semáforo, fui abordado por um negrão forte, cujo rosto indicava não ter mais de 16 anos, porém com um corpo de lutador de boxe. Rosto grave, ele me estende a mão direita com a palma para cima. Não sou avesso a diálogos junto aos cruzamentos, ao contrário do que me aconselham os medrosos de plantão. Baixo o vidro da janela e lhe pergunto o que ele pretende, como se eu não soubesse. “Dinhêro!” responde ele com uma economia de palavras sintomática. Baixa em mim o educador que sempre fui. “Você, com essa saúde, com esse corpanzil que poderia ser útil com uma enxada na mão, vagabundeando por aí?” Ele me olha com dois punhais nos olhos. Eu insisto. “Você não tem medo da polícia?” Ele mostra uns dentes alvos. “Poliça! Poliça! Pra que que tem adevogado?” Ulalá! O rapaz tem experiência na área jurídica. Respondo-lhe, ingênuo: “Claro que sei. Eu também sou advogado”. Ele faz uma cara de espanto: “Quem? O senhor? Velhão desse jeito?”

Logo que atingi a idade da razão fui com a Maria Helena e a Thais ver uma exposição no MASP. Pedi três entradas à bilheteira. “Três não, duas”, disse a Thais, com toda sinceridade, própria de sua delicada e veraz pessoa, dentista recém-formada que se dedica a pacientes especiais.

“Ele não paga”, esclarece, como se eu fosse um de seus pacientes. Confesso que aquilo foi um banho de imersão num lago escandinavo. Eu ainda não me dera conta de que havia transposto o cabo da Boa Esperança. Levei alguns dias para superar o trauma que aquela fedelha me havia produzido com sua frase cruel, embora verdadeira. “Que tal se puséssemos sobre a crueza da verdade o manto diáfano da fantasia, como queria o poeta?” indaguei-lhe, inutilmente.

Devo reconhecer, porém, que, neste país, os velhos contam com muitas vantagens, como a chamada prescrição etária. De fato, aqui os maiores de 70 são tratados pela lei penal brasileira como se fôssemos debilóides, quase incapazes de saber a relevância dos atos que praticamos, incapazes de distinguir entre o que é privado e aquilo que deve permanecer público. Ou entre o que é meu e o que deve ser do outro. Praticar crimes todos nós sempre praticamos, é verdade, mas, chegando aos setenta, temos mais motivos para praticá-los, com a prescrição da condenação correndo pela metade. Talvez até eu me candidate a algum cargo eletivo. Do modo como funciona o Judiciário, eu com minha lucidez, um mandato eletivo na mão e os benefícios dos prazos prescricionais pela metade acho que nos próximos anos abrirei, finalmente, a tão sonhada conta na Suíça. Ou numa dessas ilhas cujo roteiro de viagem pode ser obtido nas páginas policiais dos jornais. Quando finalmente vier minha condenação criminal, será só juntar minha certidão de nascimento aos autos e, zás!, tudo aquilo vai para o arquivo.

Quem mandou você querer continuar jovem?

Um comentário:

  1. Caro Suannes a velhice está na mente já me disseram, mas o que vejo com meus 50 anos que apesar de ser livre não 'condiz' mostrar que gosto de coisas novas ou tentar ser feliz ouvindo/dançando (melhor que os jovens) numa disco 70/80 onde meus filhos vão, seria quase ser ridícula perante a amigos de meus filhos, mas o engraçado disso tudo
    que meus filhos ouvem velhos lps e cds de Chico e Vinícius e acham 'cabeças' e eu sou rídicula se gosto de assistir/ouvir Madona , Céu, Adriana Calcanhoto...
    O corpo pode estar cansado, com suas marcas inevitáveis, mas o coração não...a vontade do novo...
    Belos tangos ...mas hoje está muito difícil se atualizar, pois realmente hoje há muita gente fazendo arte sem ao menos saber ou sentir, mais uma maneira de ganho, comercial...o marketing vence...

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