02 agosto 2011

Equívocos vários



Uma jovem amiga minha reuniu-se com colegas de colégio e elas, todas já formadas em curso superior, puseram-se a falar de seus encantos e desencantos amorosos. As solteiras reclamando da escassez de homens na praça; as casadas reclamando da má qualidade do produto disponível no mercado. Uma delas, ao que consta, muito vistosa, juíza de Direito, não tinha de que reclamar: “Minha companheira é uma dona de casa de primeira linha.” Espanto geral. “Ela lava, passa e cozinha como poucas. Até minha mãe reconhece isso.” Ponto para minha amiga Berenice, essa Nélson Carneiro dos Pampas.
Aliás, a intolerância que ainda grassa em nossa sociedade, onde um casal de homens não pode abraçar-se na rua que correm o risco de ser espancados, talvez com perda de uma orelha na refrega, pesasse embora a desconhecida circunstância de serem pai e filho.
), exige que se mobilizem mais policiais do que seria necessário se fosse um encontro de torcedores de futebol. Pois lá está o Dr. Brandão, meu dileto amigo, como delegado de plantão, atendendo a uns e outros casos de rotina quando chegam eles. Dois rapazes, cuja vestimenta escandalosa não deixaria a menor dúvida a respeito de suas opções generais (a palavra da moda não é “gênero”, em lugar do surrado “sexo”?). Um deles dirige-se ao delegado: “Doutor, nóis é gay e queria...” O bem intencionado delegado, preocupado com a última flor do Lácio, qual um Bernard Shaw caboclo, corrige: “Nós somos, você quer dizer. Nós somos.” E o rapaz, dando um saltinho e batendo palmas: “Ai que bom! Então o senhor entende nóis.”
E já que mexi em casa de marimbondo, reconto o que já citei alhures e que vem a talho de foice agora, além de permitir-me falar da figura ímpar de um grande amigo.
Marco Antonio Monteiro, juiz dos mais sensíveis, notabilizou-se por vários mal-entendidos que produziu ou que com ele foram produzidos pelas parcas, que se prestam a entrar no anedotário, não fossem tais fatos coisa absolutamente verdadeira tal como narrado por ele próprio, quando podia fazê-lo, que, dentre as qualidades maiores que tem, está a de haver sido meu colega de escritório tanto quanto nosso terceiro sócio, o Ari Augusto Longo, logo que nos formamos os três e haver-me incentivado, o Marcão, para prestar exame de ingresso na Magistratura, coisa que ele mesmo só veio a fazer muitos anos depois. Nós ambos perdendo dinheiro em nome da vocação, que nosso escritório ia de vento em popa, diga-se.
Quando se submeteu ao chamado vestibular para Direito, não contando com o trânsito da capital de São Paulo, já naquele tempo caótico, e dependente de ônibus como tantos de nós, chegou atrasado ao exame oral, que, naquele tempo, havia isso sim senhora!, ouvindo do presidente da banca examinadora que esperasse até terminar a argüição do último aluno, quando resolveriam se ele seria inquirido ou não, o senhor aguarde! Terminada a oitiva dos alunos que haviam comparecido no horário, muitos dos quais permaneceram sadicamente na sala à espera da solução a ser dada ao caso do retardatário, ele foi chamado pela banca, cujo presidente se pôs a censurá-lo duramente. “Imagine se o senhor já fosse um advogado e comparecesse a uma audiência depois de ela ter terminado, que ocorreria com seu cliente? Diga, que ocorreria? É preciso desenvolver desde agora o senso de responsabilidade, o senhor não acha?”
O aluno, vendo que tudo estava perdido e, perdido por um perdido por cem, inventou uma explicação convincente para seu atraso. “Deu-se que eu me levantei muito nervoso por saber que seria examinado por Vossa Excelência, um professor sabidamente rigoroso, e com isso apertei em demasia a pasta de dente e praticamente esvaziei todo o tubo de pasta. Sabe lá o senhor o que é colocar toda aquela pasta de volta para dentro do tubinho?” O examinador olhou-o com olhos fuzilantes, mas o decano da banca, o Prof. Sampaio Dória, homem de fino humor, explodiu em uma sonora gargalhada e o Marco Antonio não só foi admitido a fazer o exame oral como foi aprovado e passou a cursar a faculdade do largo de São Francisco, onde, dentre outros, teve como mestre e professor de Direito Judiciário Civil, era assim mesmo que se falava naquele tempo, o José Antônio de Almeida Amazonas, que, em pleno exame oral, resolveu humilhá-lo: “O senhor, com esse nome, não deveria estudar Direito mas História”, ao que o Marco Antonio retrucou: “E o senhor, com esse nome, deveria lecionar Geografia”, encerrando-se o exame com risos de lado a lado.
 Ele, juiz, atendeu o réu, que era um notório homossexual que ganhava a vida fazendo o trottoir numa grande avenida da cidade sede da comarca e que havia sido condenado por alguma briga com um colega de profissão, assegurando-lhe a sentença o benefício do chamado sursis. O Marco Antonio, leitor emérito das reflexões do Pietro Ubaldi,  procurava, a cada visita do réu, convencer o homossexual a mudar de atividade, ocupando-se de algo mais condizente com a moral e os bons costumes, onde já se viu? até porque fazer o trottoir logo logo o traria de volta à prisão, sabido que é o risco que se corre nesses locais, o senhor não acha? e mais isto e mais aquilo e o condenado acabou por convencer-se de que o zeloso magistrado tinha toda razão, resolvendo mudar-se para outra comarca onde morava seu irmão, homem influente, que certamente lhe arranjaria emprego, talvez até mesmo como motorista dos sobrinhos, o que acabou por acontecer. Isso, porém, não durou muito tempo porque os meninos pediram ao pai que contratasse outro chofer eis que os colegas de escola das crianças, olha só que maldade, doutor Marcos,  caçoavam do jeito afeminado do motorista, que se despedia dos passageiros enviando-lhes beijinhos, veja o senhor, seu doutor, como é o preconceito! não fossem eles meus sobrinhos, que eu amo demais, demais mesmo, coisa que certamente eles não contaram aos colegas de escola, veja só o senhor! E eu agora estou de volta a esta comarca, onde vou voltar a fazer o trottoir, seja o que Deus quiser, ninguém quer contratar uma bicha escrachada como eu, doutor, diz ele dramático.
E se põe a chorar convulsivamente e o juiz procurando consolá-lo, mesmo porque aquele choro já estava a despertar a atenção de advogados e outros passantes, vá a gente imaginar o que estão eles a conversar! E o Marco Antonio procurando valorizar a atividade do homossexual, quem sabe se não é uma profissão assim tão repugnante como pensa nosso preconceito. Se ele prefere isso a um trabalho nos moldes tradicionais, tudo bem tudo bem, é um direito dele. “Mas me diga uma coisa: dá para você se manter com o que você ganha? quanto você cobra cada vez que sai com um cliente? pergunta ele. E o jovem, entendendo mal a curiosidade do bom e brasileiro juiz Magnaud, com um sorriso de gratidão no rosto já recomposto: “Ah, doutor, o senhor tem sido tão bonzinho comigo que para o senhor eu não cobro nada!”


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