07 outubro 2011

O fim

“O homem provém da natureza do universo, e seu centro é o centro do universo. Essa experiência interior dos gnósticos, alquimistas e dos místicos está relacionada com a natureza do inconsciente, e poderíamos mesmo dizer que é a própria experiência do inconsciente.” (Carl Gustav Jung, O símbolo da transformação na missa)

Hoje completo 74 aos de idade e confesso-lhes que jamais pensei chegar tão longe em minha caminhada. É claro que diante de um Oscar Niemeyer eu sou uma criança, mas ele é um revolucionário, que se recusa a obedecer às leis da natureza. Em sua inteligência natural, os chimpanzés, as gazelas e os elefantes sabem que os doentes, os velhos e os aleijados devem ser deixados no caminho, pois estão destinados à alimentação de seus predadores naturais. Que diabo, os leões e as hienas também são filhos de Deus. Nós, humanos, é que temos essa mania de driblar a morte.
“Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando, como faz com todos. É só uma questão de quando e como. Aprendi muito com essas confrontações, especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família, e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter que eu a recomendaria a todos, não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco.”
Quem disse isso? Foi o astrofísico Carl Sagan, no livro Bilhões e bilhões, falando da doença que acabaria por levá-lo, aos 62 anos de idade. Já o David Servan-Schreiber, mesmo com câncer no cérebro, diagnosticado quando tinha 31 anos de idade, chegou aos 50.
Dizem que os chineses choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão.
Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta “como vai você?” tentei brincar: “cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura.” Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu “pessimismo”. E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, o frei Lauro, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente?
O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica?
Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Há um nada antes do início da corda que não se confunde com o início da corda. E há um nada depois do fim da corda, pois o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda.
Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama nascimento e o fim da vida se chama morte. Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. Ao menos sob o ponto de vista físico. O que veio antes e o que virá depois, o que é a alma ou o sopro da vida chamado espírito são outros trezentos e cinqüenta mil réis.
Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio? Você não sabe. Para onde ele foi? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde? Quando? Como? Você também não sabe.
Será difícil imaginar a vida como esse vôo?
Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio boiando até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n’água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte.
Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo “praia de tombo”, diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia, com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui.
Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. “Help! Help!” foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro.
Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de “Cooper”. Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: “Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só no câncer os cretinos insistem em por apelido.” Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: “Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!” É enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase insuportáveis e estarei novinho em folha, concluí.
Mais três anos e o câncer agora é no fígado. Como o órgão fora pouco castigado pela quase nenhuma bebida alcoólica tomada ao longo da vida, extraído apenas um terço dele, em exatas dez horas de cirurgia, já está fora o inoportuno tumor. Agora era aguardar que, tal como o rabo da lagartixa, o órgão se refaça. “Estatisticamente, o risco de nova recidiva é de 50%” me diz a Dra. Nise Yamaguchi, ao ser indagada por mim. Então aguardemos.
Quando o Gianecchini foi diagnosticado com aquilo que nossos pais chamavam de “tumor maligno” (o inverso disso não é “tumor benigno”, como se diz por aí, pois, sendo tumor, não pode ser benigno, mas tão somente um “tumor neutro”), ele, como o mais novo integrante dos CCs (Cancerosos Conhecidos, em contraposição aos Alcoólicos Anônimos), preferiu a Medicina clássica. Eu também, o que não significa que eu só acredite nos terapeutas do aquém. Se nem o Jung, com a cultura vastíssima que acumulou, desprezava o deus absconditus, o que muito cristão critica sem conhecer, quem sou eu para questioná-lo?
Que me ficou dessas experiências? A certeza de que nossa vida é aquilo que nós fazemos dela.
Se você lê meus escritos há muito tempo, dirá que esta crônica já havia sido publicada há alguns anos. Engano seu, pois, como dizia o Heráclito, 500 anos antes de Cristo, ninguém passa duas vezes pelo mesmo rio. Tanto que só se faz 74 anos uma vez na vida.
Tchin tchin pra vocês!

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