30 março 2012

O filósofo do Méier

A justiça não é apenas cega. Sua balança está desregulada e a espada sem fio.
Pode ser até que tenhamos alguns direitos iguais. Mas nossa justiça faz questão de manter os deveres bem diferentes.
A justiça é cega, mas quando vê um pobre diabo por perto, baixa a bengala nele.
Livrai-me da justiça que dos malfeitores livro-me eu.
Tenho certeza de que o mundo está-se aproximando de uma era de verdadeira justiça e estabilidade social, em que todas as boas ações serão devidamente punidas.
(Millôr Fernandes, Millôr definitivo – A Bíblia do Caos, 1994)

Um país que não coloca na sua Academia de Letras um Mário Quintana e um Millôr Fernandes não pode ser considerado sério, nem mesmo por um general francês. Se eu tivesse vez e voz no assunto, não teria a menor dúvida: imporia ditatorialmente minha vontade aos nossos preclaros acadêmicos. Nada de Jô Soares nem Chico Buarque. O nome a ser escolhido, diria eu do alto de minha prosopopéia, seria bem outro.
Nada pessoal contra o Chico, de quem me tenho afirmado e confirmado ser uma das muitíssimas viúvas musicais. Nosso querido rapazinho de belos olhos verdes, o maior letrista que o país já produziu, deu pra envelhecer, tornar-se até avô, veja que disparate!, e resolveu fazer o caminho inverso daquele percorrido pelo amigo de seu pai. Em lugar de evoluir de literato para cantor popular, com direito a um copo de uísque em cada mão, ou a passar o dia inteiro dentro de uma banheira telefonando para meio-mundo, como fazia o Vinicius, não é que o rapaz resolve fazer o contrário? Não mais achados extraordinários como esta definição antológica: “saudade é o revés de um parto, saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu”. O ex-futuro-arquiteto agora, duplamente balzaquiano na idade, quer sê-lo também na vida literária. Em lugar de caipirinha num bar do Leblon agora é um copo de kir num bistrô parisiense. Pode?

Fôssemos falar de sua junguiana anima, que, já no início da carreira, o fez compor “com açúcar, com afeto, fiz teu doce predileto, pra você parar em casa”, que ele só gravaria muitíssimos anos depois, suspiraríamos, desanimados: “esse moço ‘tá diferente!” A verdade é que monsieur Holandá jamais mentiu sobre a atração que o Velho Mundo exercia sobre ele. “Tu ris, tu mens trop; tu pleures, tu meurs trop. Tu as le tropique dans le sang et sur la peau" reclamava ele languidamente em Joana Francesa, misturando a língua de ontem com a língua de hoje. Prenúncio do que nos aguardava. Mas, para chegar a acadêmico vais ter de tomar muito kir, meu prezado Carioca.

Já o José Eugênio Soares é da mesma estirpe do Caetano Veloso. Ninguém em sã consciência irá negar o valor indiscutível deles, como artistas. Mas ambos, tão distintos fisicamente, têm em comum a mesma megalomania. Sugiro-lhe, caro leitor: quer enriquecer? Então compre qualquer um deles por aquilo que ele efetivamente vale no mercado e, depois, o revenda por aquilo que ele pensa que vale. Você ficará milionário!

Pois nenhum deles seria meu candidato à Academia Brasileira de Letras. Ligasse ele para essas coisas e eu faria lobby pelo Millôr Fernandes, este, sim, o brasileiro mais adequado a ocupar uma das cadeiras daquela casa que já recebeu até outro distinto velhinho, que, embora não seja escritor, tinha uma qualidade rara entre os brasileiros de hoje: era amante dos livros. O Millôr, que nasceu Milton e já foi Emmanel Vão Gôgo, deu à cultura brasileira tanto que muito Ruy Castro só estava esperando o homem dar sua última boutade, como diria o Chico, com quem, aliás, o Millôr já trocou socos,  para biografá-lo. Em livro de vários tomos. Um para o “Dicionovário”, outro para o “Ministério de perguntas cretinas”, outro para suas “Composições Infantis” e mais não sei quantos para seus desenhos, que, fosse ele norte-americano, e estariam no New Yorker, a fazer sombra ao Saul Steinberg. Mas isso fica por conta do Ruy.

É claro que eu poderia fazer lobby para mim mesmo, como o Sarney. Bastaria uma dose diária do mesmo tônico que o Jô e o Caê tomam em silêncio e lá estaria eu percorrendo os corredores da Casa de Machado de Assis a mostrar a meus futuros colegas o respeitável currículo que ostento. Livros de contos? Tenho vários. De crônicas? De poesia? Infantis? Juvenis? Em português ou em outra língua? Viktor var en meget kvikk og livlig gutt. Han var nærmere fem år gammel, og var beveget av en uforstoppelig nysgjerrighet, como eles iniciaram, na Noruega, um livro infantil chamado Doc Vik.  “Quer que traduza?”, perguntaria eu ao Paulo Coelho, vingando-me das prateleiras e mais prateleiras dos livros do homem que aparecem em todas as livrarias de Oslo. Um acinte!

Sabemos, aliás, todos os que escrevemos como é terrível esse momento de quererem publicar nossos livros em outro país. Imagine alguém pretendendo mostrar aos japoneses, amantes que são da bossa nova, algum trecho meu, em que, com a ironia que me compete, falo de coisas mundanas. Como seria isso dito na língua deles? E como eu poderia saber se o tradutor foi fiel às minhas ideias e a meus propósitos? Sei muito bem que tradutore, traditore, mas ser traído por algum samurai é morte na certa!

Mas voltemos ao Millôr, cuja verve é simplesmente imorredoura: “Morte súbita é aquela em que a pessoa morre sem o auxílio dos médicos” disse ele premonitoriamente. Aí veio um médico e assinou atestado dizendo que ele morreu de parada cardíaca. Algo bem adequado a um humorista.

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