23 setembro 2012

Luar sobre Havana

 

No Malecón, pessoas ainda conversam, debruçadas sobre a mureta larga, onde um e outro atrevido senta-se, admirando, pela milésima vez, a água que, tal como as pessoas que por ali passam, nunca é a mesma. Viejos coches trafegam sonolentos em ambos os sentidos. Fords e Packards que testemunham tempos idos ou tempos que insistem em ficar, em imagens tão impensáveis como um desfile de mamutes ou desses megalossauros que o cinema faz renascer das cinzas antidiluvianas. No ar, o eterno e enjoativo cheiro de charuto.

A limpeza da rua destoa das paredes enegrecidas das casas, que lembram velhos mineiros que, chegando do trabalho famintos, sentam-se à mesa sem mesmo passarem pelo chuveiro, fosse embora ele apenas uma lata de banha vazia com providenciais furos nos fundos, suspensa a uma altura conveniente para recolher a água provinda da bica. E as crostas acumulando-se no rosto e nos braços, incorporando-se ao corpo, para sempre, tatuagens com figuras abstratas a registrar o passar do tempo. Assim o amarelo das fachadas, já descascadas, mais pelo desleixo dos moradores do que pelo inexorável rato que tudo come, o tempo. O que é de muitos não é de ninguém, não é isso?

A janela do sobrado em cuja soleira apoio os cotovelos também traz nas venezianas as onipresentes marcas do mesmo rato, o minúsculo roedor que nada deixa ficar como era, como diz a sabedoria hindu. Uma ou duas palhetas já deixaram o posto há algum tempo, vencidas pelo cansaço, sem que houvesse outras de plantão para substituí-las. O que resta de vidros na janela está surpreendentemente limpo, ainda que discutível seja sua utilidade, já que o vento contorna o obstáculo sem a mais mínima cerimônia.

Na sala, o relógio na parede testemunha, na imobilidade dos seus ponteiros, o tempo que parou lá fora, por desnecessário. Como se quisessem mostrar a inutilidade de seus movimentos, diante da identidade entre o ontem e o amanhã. É um relógio simpático, sextavado, imponente em sua imobilidade absoluta, com o tampo de vidro limpíssimo, fruto dos cuidados de quem faz o que pode para conservar aquelas peças arqueológicas. Como um taxidermista que diariamente escova os dentes inúteis dos seus animais empalhados.

Um móvel envidraçado, estrategicamente postado sob o aposentado marcador do tempo, portas de vidro translúcido, cujo largo bisotê multiplica os escassos objetos lá dentro guardados. Um bule com uma pintura bizarra, tendo no bocal um friso dourado; cinco xícaras de café com os respectivos pires, todos com a mesma pintura campestre e o mesmo arremate dourado do objeto maior. Alguns outros objetos anônimos passam despercebidos pelo olhar do visitante, em sua insignificância estética. Talvez uma geladeira sem marca, que, se fosse aberta, mostraria toda sua inutilidade, no vazio de suas prateleiras.

Sobre a peça, um impensável vaso de louça com a boca levemente lascada e um ainda mais impensável conjunto de flores plásticas, cores desbotadas e um repugnante perfume de bolor. Quem as teria plantado ali? Quando? A que título? Para remate, uma toalhinha de renda, já amarelecida, cujo bico pende além e abaixo do vaso.

Repare o chão. São tábuas largas, enceradas certamente com sebo animal e lustradas com os pés envoltos em improvisadas luvas de algodão. Em frente ao desbotado sofá, um tapete ainda mais desbotado, a sugerir que muitas noites ali foram passadas em conversas intérminas, cujo conteúdo só as paredes conhecem. Sobre que falariam? Sobre quem conversariam? Seriam conversas descuidadas, entre um gole e outro de rum, ou sussurros, ditos entre um lance e outro de olhos para os lados, como se os espiões pudessem surgir do nada num átimo de repente, brotados da parede?

A mesinha no canto e a luminária claramente improvisada, pois ninguém venderia um objeto daquele formato e acabamento, completam a decoração do ambiente, algo próximo de uma cela franciscana, ou uma instalação de algum Braque cubano. Na falta da imagem do santo, a fotografia do bravo guerreiro e seu grito de guerra: hay que endurecer sin perder la ternura jamás! Também poderia ser hace de mi señor los brazos y los piés de tu misericordia.

No quarto anexo, a cortina de voal baila solitária para uma platéia de fantasmas, uma sinistra dança do ventre por força da brisa que vem do mar distante. O colchão largo, posto diretamente sobre o chão, sugere a presença de um casal na casa. Ao menos naquelas dependências da casa. Um armário, apinhado de coisas impróprias a um quarto de dormir, demonstra que a casa do casal tem como limite as paredes do quarto. Não me atrevo a tocar em nada, como quem teme que o toque das mãos produza danos irreparáveis naquelas memórias.

Lembro-me vagamente dos sonos longos que ali passei, quando a companhia justificava, ou nas noites de insônia, com um puro entre os dedos, saboreando sua fumaça dançarina. Em que pensava o jovem idealista entre uma tragada e outra do longo e saboroso charuto? No futuro é que não estariam seus pensamentos, pois jamais fui sonhador. No passado? Ainda menos, pois sempre fui pragmático.

Noto, porém, que esse pragmatismo hoje assemelha-se a Fords e Packards que circulam pelo Malecón da minha mente, e que os rolos do charuto que subiam naquela época estão sendo substituídos por dois corregozinhos mornos que lentamente buscam seu caminho pelo acidentado terreno do meu encarquilhado rosto, como se descessem as encostas da longínqua e saudosa Sierra Maestra.

 

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