19 outubro 2012

A galinha


 
"O criador do conto é o próprio Homem, na sua necessidade de fazer o mundo ter sentido, em sua necessidade de narrar a vida para si mesmo. Se você argumentar 'mas nós não estamos discutindo a forma literária chamada Conto?' eu vou responder: 'mas como você define Literatura? Especialmente quando você considera a expressão literatura oral, a partir da qual, eu diria, o Conto nasceu?'. Tal é a confusão que surge quando se lida com esta ininteligível criatura".
Frank Delaney, Irish Short Stories, Introduction

 
A galinha da Clarice (clique aqui) passeava calmamente no telhado do sobrado. Era uma galinha gorda, penas pintalgadas, dessas galinhas que alimentamos durante meses e que são sacrificadas às vésperas de um dia especial, desde que as crianças a ela não se tenham afeiçoado, vindo então a implorar que à ave se lhe dê destino outro que não a panela que a ela estava desde sempre destinada.

Não era tampouco como a galinha do Virgílio (clique aqui) digo-o desde logo, para que dúvidas não haja.

Imagine uma galinha daquelas ali, posta por alguém que nada mais tivesse para fazer e houvesse dado a si o trabalho de galgar o telhado, a caminhar cuidadosamente de telha a telha, sempre no prenúncio de que uma delas se partisse, como é das estatísticas, a criar a necessidade de ser substituída, não me vá a chuva por ali cair sobre o teto e surgirem goteiras na sala de visitas ou, muito pior, num dos quartos da casa. O que, à sua vez, criaria a necessidade de alguém, talvez ele mesmo, o desastrado autor do dano, ali voltar ao telhado, trazendo consigo nova telha para substituir a que se partira na vez anterior. A criar-se novo risco de novas telhas partirem-se, a criar-se a necessidade de alguém ali retornar, talvez ele mesmo, para substituí-las e assim repetir-se essa lenga-lenga ad infinitum.
 
Era, em súmula, uma galinha de carne, osso e penas.

As pessoas que se dignavam de olhar para cima, com o risco de meterem o pé em algum buraco da calçada, abrindo uma das mãos, que levavam perpendicularmente à testa, à maneira de um aparador que lhes toldasse os possíveis efeitos dos raios solares incidentes sobre os olhos atrevidos, indagavam-se o que fazia aquela galinha naquele local. Alheia a tais comentários, talvez por falta de orelhas ou em razão da distância, a galinha da Clarice caminhava lentamente, como é próprio dos galináceos, dobrando, sucessivamente, cada perna, até porque, se dobrasse ambas ao mesmo tempo, não andaria, sentaria.

E caminhava para diante, mesmo porque galinhas não dão marcha-a-ré. Aceleram, quando se faz necessário, como se um galo no diuturno cio com ela cisme e manda a pudicícia galinácea que ela se faça de rogada e não aceite desde logo a corte, pondo-se a correr em círculo, sempre a ser seguida e perseguida pelo galo que a todos deseja mostrar quem é que manda no terreiro. E lá longe, alheia aos olhos curiosos e pudicos dos presentes, ela se dignará de abaixar-se, para que ele a monte e depois, sexualmente satisfeito, dela desça e faça um rodopio, como se dissesse "de que te valeu correr tanto?" E ela então se levantará e se sacudirá toda, espadanando as penas, como a querer eliminar delas todos os vestígios do natural ato que acaba de praticar, sabe-se lá se voluntariamente ou não.

Mas ali, no alto do telhado da casa, não havia porque nem como correr em círculo, até porque galo algum ali subiria apenas para dar vazão à libido, presumindo-se ajam os galos com prudência mínima.

Pois à medida que a galinha da Clarice, não a do Virgílio, ressalvo segunda vez, dobrava a perna, o que fazia lentamente, como é próprio das galinhas desde o início dos tempos, se permitido for fazer uma tal suposição, ela também lentamente recolhia os magros dedos, dada a evidente inutilidade de mantê-los empalmados, como a dar adeus a fantasmas. Mas, à medida que a perna voltava, também com lentidão, a esticar-se, os magérrimos dedos iam-se afastando uns dos outros, como a formar, mecanicamente, uma esquelética flor, que ela exibia a ninguém.

Enquanto caminhava pelo telhado, valendo-se daquele caminho natural formado pelo encontro das telhas que vinham de um lado e de outro, da direita e da esquerda, unindo-se ali, naquele cocuruto, e casadas uma a outra por outro tipo diferenciado de telha, dita telha de arremate, a galinha da Clarice olhava, também sucessivamente, à direita e à esquerda, como se aguardasse aplausos ante o seu atrevimento de, menos votada ao vôo como tantos de seus parentes distantes, passear atrevidamente a tantos metros do solo. Galinha pensa?

Lá embaixo, alguns desocupados ou, talvez, preocupados com a possível extinção da espécie, acompanhavam aquela marcha da galinha, algo digno de soldados vietnamitas em parada militar. E ela alheia a tudo e a todos, sabe-se lá se ainda tem mãe, a qual certamente aflita estaria, se existente, ante aquele despropósito galináceo.

Eis que dois pombos, não mais do que dois, assentam-se no alto do telhado, naquela espécie de coluna vertebral que a maioria dos telhados apresenta, ali posta, não para suster costelas, mas para dividir o telhado em duas águas, como diz o vulgo, até porque a galinha da Clarisse passeava caminhando exatamente ao longo daquela longa e falsa coluna vertebral.

Que faz ela, ante a inesperada visita? Que fazem essas duas aves cá no alto, uma delas a girar em círculo sem sair do lugar? Pasma, a galinha da Clarice simplesmente sustém o passo, mantendo a perna dobrada e os dedos recolhidos, como é próprio dessas aves em tais momentos de indecisão. Que quer esse casal postado em meu caminho? há de ter pensado a galinha, se aceitarmos que as galinhas de fato pensam, minúsculo que seja seu cérebro, como sabemos todos nós. Ou haverá quem se tenha refestelado a comer cérebro de galinha, tal como se come os de boi ou de vaca, ditos eufemicamente miolos?

O fato é que essa vacilação galinácea custou-lhe a ela a vida, pois o rapaz da casa surgiu num átimo de segundo, essa fração de tempo imedível, e a agarrou por uma das asas, levando-a, por mais que ela resistisse, para a casa, onde, não havendo crianças nem tendo ela botado ovo nenhum, mataram-na, preparam-na à cabidela, comeram-na com quiabo e arroz branco.
E passaram-se anos. Muitos e muitos anos.
 
 

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