.: Menas verdades

02 abril 2013

Menas verdades

Apresentação

"Uma sequência de histórias de ácida criticidade é o que apresenta Adauto Suannes em sua mais nova obra. O realismo e o bom-humor característicos do autor também se fazem presentes em cada um dos 28 capítulos de Menas Verdades – causos forenses ou quase.

Como pontua o jornalista Juca Kfouri no prefácio do livro, os casos contados são deliciosos e exemplares, tanto para o bem quanto para o mal. E, em cada linha, o autor transpira personalidade, seja na fluida linguagem, seja na criativa construção da narrativa, garantias de uma prazerosa leitura."

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Para narrar aos putos

"A tua mãe avia-se no talho da minha." -
Lido em 13 Anos de Mafalda, de Joaquim Lavado (Quino), editado pela Publicações Dom Quixote, Lisboa. No Brasil seria: "A tua mãe frequenta o mesmo açougue que a minha".

A Gata e o Passarinho

Manhã de verão, no banco de jardim havia um gato
esparramado no banco de cimento, a tomar sol. Na verdade era uma gata. Gatos gostam de passarinhos, como é sabido. Aquela gata era exceção a tal regra.
Aproxima-se timidamente um passarinho e, depois de pedir licença, apresenta-se:
"Sou um tico-tico". Cara amarrada, diz a gata: "Não precisa
repetir que eu não sou surda." Ele tenta desculpar-se: "É que
eu..." Ela, mais irada ainda: "Já falou demais da conta. Sente-se aí e não me aborreça." Ele, rapaz experiente, espera pelo pior: "Acho que já vou indo. Tenho um encontro marcado com um quero-quero". A gata levanta-se e dá um berro: "Eu já disse que não se faz necessário repetires o que me dizes, pois eu não sou surda. Ouviu bem? EU NÃO SOU SURDA!"
Nisso aproxima-se uma jovem muito bonita, cabelos louros encacheados, que se agacha e chama a gatinha: "Vem, Mimi. Vamos pra casa!
Diz o passarinho: "Melhor não repetir o nome dela, que hoje ela está com péssimo humor".

A coroa do rei

Não é comum aparecer por aqui um rei de verdade.
Temos rei do futebol, da música, da pizza, do berimbau e até rei Momo. Aquele, no entanto, era um rei de verdade, desses saídos de algum conto de fadas. Tinha roupa dourada, espada na cintura e até manto de arminho, mas faltava-lhe algo na cabeça, algo que todos os reis têm na cabeça. Em razão disso, solicitou ao seu embaixador que o levasse a algum shopping para comprar o tal objeto, mesmo porque, surpresa das surpresas, falava e entendia a língua que os brasileiros
utilizam para comunicar-se.
Procura de cá, procura de lá, levaram-no a uma loja muito elegante onde, segundo disseram, havia coroas autênticas a venda. Ele escolheu aquela que lhe parecera a mais digna de seu reinado.
" - Quanto é?" indaga ele em autêntico português brasileiro, para surpresa do atendente, que esbanjara o seu melhor
inglês para atender Sua Majestade. O jovem funcionário da loja recompõe-se e comunica ao monarca o preço da coroa pretendida, apimentando no preço, como seria natural nas circunstâncias.
" - É cara!", diz surpreendentemente o monarca.
" - É coroa!", diz mais surpreendentemente ainda o jovem atendente.

Sucos

O André pediu à mãe que lhe servisse um suco de frutas gelado, pois havia chegado do colégio, caminhando sob um sol de rachar mamonas, expressão dele.
"- De qual delas?" perguntou a mãe, apontando para a cesta de frutas.
" - Quero suco de caranja".
" - Você quer dizer laranja, não é?" corrige a mãe.
" - Seria laranja se estivesse longe. Como está aqui pertinho só pode ser caranja", diz o engraçadinho.
A mãe entra no jogo, mostrando-lhe duas delas.
" - Estas devem estar sucurrápidas".
Ele faz cara de espanto e diz, imitando um colega de seu pai, que é lusitano:
" - Não te dominei a ideia, pá."
E a mãe: "Se você não estivesse morrendo de sede eu pegaria umas caranjas suculentas".

Frio

Mesmo com a chegada do inverno, o quarto estava abafado. Abri a janela e dirigi-me a meu irmão: “Ar, Mário”. Ele foi ao armário e retirou de lá as roupas de lã, sobretudo o sobretudo, cuja cor eu sabia de cor. Num pulo eu pu-lo sobre o paletó e o pulôver, cobrindo as pernas com uma mantinha. Contudo, com tudo isso o frio se mantinha o mesmo. Que fazer antes da volta do verão? Um dia vocês verão. Abri a porta e me esqueci da janela. Já nela eu não pensava. “Que me importa”, disse o Mário, que é casado com uma veneziana.

Viagem

“E viajar, quando?” indagou-me um amigo. “Outubro ou nada”, respondi. “Você guarda o guarda-chuva, pega a mala e a mulher e segue para Paris, achando que vai amá-la sempre”, prosseguiu. “Mas nem sempre ela chega. Às vezes para antes. Prepare-se para o pior.” Pior é se ela chega aberta. Falo da mala e não da Berta, ainda que a minha mulher seja boa aqui e má lá. “Mulheres melhores há milhares” reclamo.
“Nesse caso, indague: quem abriu, se estamos em julho?” ensinou-me ele. “Julho na França?”, retorno. “Há gosto para tudo”, remata ele.
No dia aprazado, tentamos pegar o avião, mas descobrimos que ele era muito pesado.
Subimos, então, no avião, mas a aeromoça mandou-nos descer de lá e entrar pela porta.
Enfim, em fim de viagem, descemos do avião e fomos ao ponto de táxi. Esperei porem as malas no porta-malas, porém isso não se deu. Que faço? Banco o turista e sento-me no banco, sem fechar a porta. É a Berta quem fecha a porta aberta,
depois de postas as malas, bem dispostas dentro do táxi, que segue em direção às Tulherias, segundo uma placa que vimos naquele minuto. Indago à Berta: “Se eu te desse um livro, tu lherias?“. “Palácio!”, responde-me ela.

Infância

Lembrei-me então de minha infância: “Você só mente”, disse-me mamãe certa ocasião.
“Somente eu?” Respondi. “Só minto eu é que é o certo”, disse ela. “Isso é uma confissão?” indaguei antes de ir para o castigo. Castigo por castigo, acrescentei: “Bem que eu tento trocar d’ilhas, mas não consigo. Só comigo.”
“Sem televisão” berrou ela. “Cem televisões”, corrigi. Achei que ela vinha me dar um tapa mas ela me pespegou foi um beijo. “Paz selada?” indaguei. Ela não entendeu. “Então me dê mais um selinho”, pedi. “Acho que nossos pais não entendem de paz” desabafei afinal.
A final de contas, o caso estava encerrado e eu não ficaria encerrado no meu quarto por mais de um quarto de hora, ora bolas!

Estatística

São 12.792 mulheres
a nos pedirem beijos
a suplicar amores
a lamentar, sozinhas,
o seu viver sombrio.

São 12.792 mulheres
a nos olhar de longe
pra se fazer notar
nos seus vestidos novos
vêm nos seus saltos altos
nas suas mini-saias
vêm no seu requebrar.

São 4.833 mulheres
já bem idosas
a se pintarem
e pintam lábios
e pintam rosto
remoçando a idade
iludindo a quem?

São 4.296 mulheres
a se pintar
aumentando a idade
e pintam olhos
pintam rosto
pintam lábios
e se misturam co'as outras
já pintadas
buscando alguém que lhes queira.

São 12.792 mulheres
que esta cidade é pequena.

Fosse maior,
seriam 100
200 mil
talvez milhões
de mulheres pintadas
à procura de amor
a mirarem de longe
procurando agradar
nesse olhar que elas têm
nesse andar que elas vêm
procurando encontrar
um aplauso pra si.

São 8.732 varões
a lhes dizer
que não têm tempo.

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