26 julho 2013

Um marciano entre nós


“Todo e qualquer animal dotado de instintos sociais bem definidos inevitavelmente adquirirá senso ou consciência moral assim que suas faculdades intelectuais se tenham tornado tão bem desenvolvidas, ou quase tão bem desenvolvidas, quanto no homem.” (Charles Darwin, citado por Frans de Waal, em Eu, primata)     
                                                                                                 

A questão da moralidade tem tirado o sono de praticamente todos os filósofos, que buscam, fundamentalmente, dar uma resposta a uma pergunta que pode ser apresentada de duas formas: “o ser humano é intrinsecamente bom e precisa do apoio social para agir de acordo com sua natureza?” ou “o ser humano é intrinsecamente mau e deve ser contido em seus impulsos pela autoridade social?” Escolha a que lhe parecer mais correta.
É claro que ambas as perguntas trabalham com um dado a ser esclarecido: que é a bondade? Que motivos teria o ser humano para, contrariamente a quase tudo o que se vê na natureza, dar aos interesses alheios igual ou maior importância do que aquela que ele dá a seus próprios interesses?
Vejamos uma família de leões. Pai, mãe e filhotes. Eles precisam alimentar-se. Infelizmente para seus vizinhos de pasto, as folhas das árvores não os satisfazem como ocorre com os elefantes e as girafas. São naturalmente carnívoros e, portanto, devem alimentar-se de outros animais. Se voltassem esse impulso para o interior do grupo, estariam violando uma lei natural, que obriga os membros de um grupo a lutar por sua preservação. Não só preservação, mas também seleção natural, para que as gerações futuras sejam compostas de membros mais resistentes. Ou seja, paradoxalmente, o leão procura fortalecer seus filhos, mesmo sabendo que, no futuro, certamente o desbancarão na liderança do grupo. Não é, certamente. o que ocorre nas tragédias de Shakespeare. Teríamos então lá o interesse do grupo posto acima do interesse do chefe do grupo? Por enquanto, o que nós temos é o casal de leões e três belos filhotes, que ainda se amamentam, mas a mãe necessita de ir à caça, pois foi encarregada pela natureza de alimentar a família, de cuja segurança cuida o pai, quando não está dormindo. Obtida a presa, por vezes com o auxílio de alguma comadre, lá estão as crianças recebendo porções pequenas de carne, compatíveis com a capacidade alimentar delas. Esse cuidado não existe em relação aos velhos, que, certamente, já foram deixados para trás, para servir de alimento a outros carnívoros, talvez hienas ou chacais.
Poderíamos ver no comportamento dessa família algo que pudesse chamar-se “moralidade natural”? O quadro de valores que comporia essa “moralidade” é de extrema simplicidade, pois fundamentalmente compreende sobrevivência e segurança, não apenas de cada membro, mas da espécie. Alguém mais romântico até veria no relacionamento deles alguma troca de afetos, como quando a mãe lambe o filhote, o que, ao que tudo indica, tem apenas a finalidade de marcá-lo com algo que o ligue a ela.
Subindo na escala animal, teremos oportunidade de estudar sociedades mais complexas, como as dos primatas inferiores (gostemos ou não, os cientistas dizem ser o homem um “primata superior”), em especial os chimpanzés e os bonobos. Enquanto nos reino animal em geral prevalece o que Darwin chamou “a lei do mais forte”, entre esses símios aparece um dado novo: a esperteza. Enquanto rinocerontes e hipopótamos disputam a liderança do grupo mediante lutas ferozes, muitas vezes sangrentas e fatais, esses primatas lançam mão de estratagemas, onde não falta até mesmo a união de adversários para derrubar o líder. Entre os bonobos, cuja sexualidade é incrivelmente exaltada, não falta até mesmo sedução sexual para obtenção de benefícios.
O primatólogo Frans de Waal, depois de descrever fatos de que teve conhecimento pessoal em sua atividade profissional, afirma: “O fato de animais se ajudarem mutuamente está longe de ser uma observação nova, mas ainda assim é intrigante.” E indaga: “Se o que importa é só a sobrevivência dos mais aptos, os animais não deveriam abster-se de tudo o que não os beneficia? Por que auxiliar outro a resolver um problema? Há duas teorias principais. Uma, de que tal comportamento evoluiu para ajudar familiares e prole, portanto indivíduos geneticamente aparentados. Isso favorece também os genes de quem ajuda. Essa teoria de que ‘o sangue fala mais alto’ explica, por exemplo, o sacrifício das abelhas, que dão a vida pela colmeia e pela rainha quando picam um intruso. A segunda teoria segue o princípio de que ‘uma mão lava a outra’: se os animais ajudarem os que retribuírem um favor, ganham os dois lados.” Mas conclui: “Ambas as teorias relacionam-se com a evolução do comportamento, mas nenhuma nos diz muito sobre motivos reais. A evolução depende do êxito de uma característica ao longo de milhões de anos; os motivos originam-se aqui e agora.”  
Subindo um pouco mais, temos o tal “primata superior” e sua trajetória de guerras, conquistas, fome e destruição. A moralidade individualista sempre fora a regra na sociedade humana, até que um líder revolucionário (tentemos deixar de lado a questão de sua divindade, para não contaminarmos os argumentos com o peso da autoridade) propôs a inversão completa no enfoque da pessoa do Outro. Enquanto os hebreus falavam de si como “povo escolhido de Deus” (ou seja, superior a todos os demais), o líder revolucionário falava em igualdade de todos, zombando até mesmo daquela arrogância, como ao narrar uma de suas histórias, que pode ser lida no capítulo 10 do livro de Lucas: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes, que lhes tiraram as roupas do corpo, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita, que, quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele.” Sabendo quanto de desprezo os judeus dedicavam ao povo de Samaria (João, capítulo 4: “Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. Nisso veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: ‘Dê-me um pouco de água’. A mulher samaritana lhe perguntou: ‘Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?’”) imaginaremos o escândalo que tais comportamentos causariam, algo que, evidentemente, não era ignorado pelo pregador. Foram apenas três anos de provocações, que, como era de esperar, acabaram por levá-lo à morte.
Que ficou depois dele, em termos de moralidade? Mais guerras, conquistas, fome e destruição, não poucas vezes produzidas pelos que diziam seguir seus mandamentos. No final do século XII, porém, surgiu na Itália um jovem, filho de um rico comerciante, que, sendo mandado para a guerra, voltou de lá com o juízo virado. Renunciou aos bens materiais, entregando simbolicamente seus trajes ao pai e saindo à rua inteiramente nu, segundo alguns biógrafos. Levou às últimas consequências essa renúncia e morreu praticamente com a mesma idade de seu líder, sendo considerado até hoje o mais radical discípulo dele. Nenhum outro religioso chegou aos extremos de S. Francisco de Assis.
Passam-se os séculos e surge um novo líder empenhado em concretizar a moralidade crística, tão abandonada concretamente em nossos dias que já há quem diga que vivemos um momento histórico pós-cristão. Os assaltantes continuam a atormentar os passantes, os assaltados continuam estendidos na calçada, muitas vezes cercados de seus filhos, os seres humanos continuam a considerar-se superiores uns aos outros, os valores cristão parecem incompatíveis com uma sociedade hedonista, imediatista, individualista, sem compromisso com o futuro, quer material quer moralmente. Como reverter esse quadro?
Jorge Mário Bergoglio mostra-se, como Papa, utilizando sintomaticamente o nome do santo de Assis, embora seja de formação jesuítica, menos interessado na organização da Igreja do que no exemplo de aceitação plena dos ideais cristãos a que, em tese, todos os ordenados estão atrelados. Algo absolutamente incompatível com a suntuosidade e o esplendor que tem marcado a atuação de tantos Pontífices e religiosos em geral.
O aparente descompasso entre as propostas do Papa Francisco e a sociedade atual, no entanto, pode ser medido por dois acontecimentos recentíssimos. De um lado, o fato de, no exato dia em que se iniciava a Jornada Mundial da Juventude, haverem sido retidos na Via Dutra dois caminhões que se dirigiam ao Rio de Janeiro carregando nada menos do que 7 toneladas de maconha, com propósitos bem óbvios. De outro lado, a cena de um grupo de guarda-costas atarantados diante da súbita invasão da pista por onde trafegava o carro onde seguia o Papa. Aquilo tanto poderia ser manifestação de afeto, como de fato foi, como início de uma agressão. Lincoln, Ghandi, Kennedy e até mesmo João Paulo II conheceram os riscos da exposição pública, que atua como ímã sobre paranoicos com tendência magnicida.
Poder-se-ia pensar que estamos diante de um marciano, que desconhece o mundo onde desceu. Entretanto, a proposta de Jesus era fundamentalmente de um claro padrão moral: a descoberta do Outro. Qual tem sido a resposta dos pretensos cristãos à “regra de ouro” (“Façam ao outro o que desejam que lhes façam”)? Mais incompreensível é a resistência à “regra de prata”. Será tão difícil assim não fazer ao outro aquilo que não queremos que nos façam?
O espanto diante da figura do novo Papa serve apenas para mostrar quão distantes estamos de uma conduta minimamente cristã.

2 comentários:

  1. Visita Papal
    "A igreja de Pedro, desde que me conheço por gente, e parei de ir à missa - quando criança uma vizinha cobrava a nossa ida à missa - e lá dentro, naquele templo de oração e religação, nós só fazíamos anarquia, ninguém conseguia se ligar em qualquer tipo de mensagem, era um 'domenus obisco', e nós completávamos, lá do fundo, 'tem manso e tem arisco', é do que me lembro. Ao contrário daqueles tempos, vejo agora o resumo da homilia do Papa Francisco, 'bote fé, bote esperança, bote amor', e ainda, dando uma receita de felicidade, bote fé, assim como o azeite e sal na sua vida, e ela terá muito mais sabor. O semblante limpo, o sorriso franco, a espontaneidade, a simplicidade, as ações que empreendia antes - na periferia de B.A. - em favor dos menos favorecidos. Resumindo, se eu fosse um desses políticos, que faltam com os deveres cívicos e traem a todo instante a confiança e os mais caros interesses da sociedade, e não saem da fila do beija-mão, sentiria muita vergonha, diante de um homem desses. Mesmo não sendo, dá vontade de pegar uma ficha para se confessar. Esse Papa é 'pop'. Cordiais saudações!"




    Cleanto Farina Weidlich



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