20 dezembro 2008

Em Terra de Cegos

Dedico este texto ao Poder Judiciário do Espírito Santo e à Polícia Militar de Santa Catarina

Foi numa terra distante. Há muito tempo.
Ali havia um estranho e inexplicável fenômeno: todas as pessoas nasciam cegas. Evidentemente, isso decorria de uma graça divina, pois esse feliz atributo evitava que as pessoas vissem tudo o que há de sórdido nas realidades que nos cercam. Nem pobres, nem doentes, nem cadáveres. E tanto era assim que periodicamente eram realizadas cerimônias religiosas, com ação de graças ao bom deus, por haver-lhes dado o maravilhoso dom da vida e por havê-los feito à sua imagem e semelhança (pois os deus deles era cego e justo, tendo na mão direita uma balança, símbolo da ponderação, e na sinistra uma adaga, símbolo da execução, ainda que nos pareça estranho se possa fazer justiça na cegueira).
Prendas riquíssimas eram trazidas de todas as regiões da tribo, para serem ofertadas em tais festividades, cuja freqüência mostrava o elevado espírito religioso daquele nobre e feliz povo, que não regateava o seu dízimo ao responsável pela sua prosperidade.
Deu-se que, certo dia, um dos habitantes daquele longínquo e feliz povoado sofreu um acidente quase fatal. Ou fatal, como também se pode concluir.
Foi assim: encontrava-se ele encarapitado em uma árvore, chamada, por motivos que se desconhece, árvore da vida, colhendo seus frutos (frutos proibidos, pois a árvore pertencia ao parque público), quando, por ira dos deuses, dali caiu e bateu o crânio em uma pedra. Durante muitas luas ficou ele entre a vida e a morte. Preces fervorosas foram feitas por seus familiares; ervas medicinais foram-lhe ministradas; sacrifícios ofertados em sua intenção; benzimentos e toda sorte de recursos foram utilizados para restituir a saúde ao chefe da família. Tudo inútil.
Certa manhã, contudo, deu-se o inesperado: quando os familiares se encontravam no templo, em adoração, implorando por sua saúde, o acidentado acordou com a saúde recuperada. Um milagre, por certo. Que somente não foi completo em face de uma particularidade, uma pequena seqüela daquele lamentável acidente: ele não conseguiu recuperar a cegueira. Por efeito da queda ele havia adquirido o lastimável estigma da visão. O terrível dom de ver. Não te todo, é verdade, mas o bastante para distinguir um pardal de um falcão.
Mal acreditando no sucedido, foi ele ao templo, pois era dia de ação de graças, ocasião propícia ao agradecimento pela saúde restabelecida, parcialmente embora. E momento adequado para fazer penitência, com vistas a recuperar a cegueira perdida.
Andando com muita cautela, desacostumado da perda da vista, dirigiu-se ao templo. No caminho impressionou-se com os resíduos que ia encontrando, o aspecto das moradias, das ruas esburacadas e sujas, em cotejo com o esplender do templo. Entrou. Procurando esconder sua desgraça, mantinha os olhos fechados, como se os demais fiéis pudessem perceber aquele pormenor. Postou-se num canto, muito discretamente, e pôs-se a fazer suas orações, em silêncio, contritamente. Os olhos, porém teimavam em abrir, por mais que se esforçasse por fechá-los. Era uma força invencível, realmente um castigo, uma tentação diabólica. Cedendo, por fim, a ela passou a examinar o que se passava ao seu redor. As pessoas orando com fervor. A certa altura, as ofertas de costume. Prendas preciosas sendo levadas ao altar, em honra ao venerado deus. Uma cerimônia tocante, realmente.
Terminada a liturgia, as pessoas foram saindo, aos magotes, vagarosamente. O pecador permaneceu no templo, para confessar-se de sua desdita a algum sacerdote. Olhos pregados no altar, viu, claramente visto, o chefe da tribo retirar, uma a uma, as oferendas que os fiéis haviam lá entregue. Tocado pela curiosidade, nosso pecador pôs-se a seguir, em silêncio, aquele transporte dos bens que, segundo os regulamentos da tribo, deveriam permanecer no templo. Soube, então, que o chefe e os sacerdotes transportavam para suas casas aqueles bens todos. Ou quase todos, já que os bens menos valiosos permaneciam, de fato, no interior do templo. Os demais, os mais ricos, eram objeto daquele inacreditável descaminho.
Mal refeito do segundo susto, o pecador pôs-se a berrar, convocando toda a tribo para a ágora nativa, a praça fronteira ao templo. Reunidos todos, tomou da palavra, ainda sob forte emoção, e pôs-se a discursar.
Cidadãos: como sabeis bem, encontrava-me eu acamado, em razão de haver pecado contra o nosso deus, tentando provar do fruto da árvore da vida. Pecado de que publicamente me penitencio, mesmo porque acabo de sair do templo, onde participei da cerimônia de expiação. O que não sabeis ainda é algo que me ocorreu hoje e que desejo contar-lhes aqui publicamente. Hoje, por incrível que isso possa soar, me foi dado aquilo que a nenhum de vós foi dado até hoje. Após tantos e tantos anos de existência de nosso povo, com os dias sucedendo as noites e as noites sucedendo os dias, com nossos sacerdotes vitalícios orientando-nos todos no caminho do bem e da prosperidade, ocorreu-me hoje algo que poderá modificar nossos hábitos, nossa maneira de viver, nossos princípios, nosso futuro.
A impaciência começou a tomar conta dos ouvintes, ante aquela peroração inicial. Aonde pretenderia chegar? Comentários aqui e ali, tentativas de adivinhação. Apostas (era um povo amante das apostas que realizavam por tudo e por nada).
O orador concluiu secamente, como se desse uma estocada final: foi-me dado o poder de ver.
Um surdo alarido percorreu os ouvintes. Uma onda que ia e vinha, cruzando-se de todos os lados.

Como é ver? Diga-nos lá o que é isso? Alguns mostravam-se claramente céticos. Descreve-nos o encontro das árvores com as nuvens do céu. Quão diversa é a curiosidade humana! Como é o rosto do nosso deus? Fala-nos da diferença entre o cão e o pássaro.
A impaciência tomava conta de todos. O homem os examinava um a um, satisfeito com a reação que as suas palavras estavam provocando. Por fim, prosseguiu:
Pouco teria a dizer-vos quanto a isso. A visão não mostra o coração do cão, que pulsa tal como o coração da ave. Se as árvores não tocam no céu é porque ainda não cresceram o bastante. Penso que o rosto de nosso deus não é visível com estes olhos. Isso seria procura inútil. Quero-vos contar algo mais relevante, mais precioso, mais fundamental do que isso. Quero-vos falar de uma visão que tive dentro de nosso templo e que pode modificar nossa vida e nosso futuro.
Os sacerdotes sempre narravam casos de santos que, iluminados por seu deus, haviam tido visões interiores. A partir dessas visões, a fé era incrementada, pois um povo que tivesse alguém assim abençoado por deus era um povo deveras feliz. O orador por certo falaria agora de suas visões religiosas.
Fale-nos, fale-nos, pediram ansiosos.
E o homem falou.
Como sabem todos, periodicamente se realizam cerimônias para aplacar as iras do nosso deus. Cada um de nós tem trazido, ao longo de nossas vidas, os nossos bens mais preciosos, nossas oferendas mais caras para ofertá-los, em holocausto, ao nosso amado criador. Sempre me perguntei qual seria o tamanho do depósito de nosso templo, para que ali coubesse tudo o que temos trazido. Hoje, quando me encontrava no templo, maravilhado com as ofertas que todos fizemos, obtive, por fim, a esperada resposta. E não poderia silenciar em nome da verdade, escolhido que fui pelo nosso criador - estou certo disso agora - para ver o que vi.
O silêncio era total. Podia-se ouvir o farfalhar das asas do pássaro que pulava de uma árvore a outra. A latir distante do cão. O pulsar dos corações inquietos. A respiração de todos.
Vi nosso chefe, nosso maioral, aquele em que depositamos toda nossa mais profunda confiança, vi nosso chefe retirar do templo, juntamente com nossos eternos sacerdotes, as peças mais preciosas, as doações mais valiosas que havíamos depositado no altar. Profanamente, traindo nosso deus e nosso povo, eles transportaram para suas casas aquilo que deveria permanecer no templo.
O murmúrio agora era muito maior. Céticos e ingênuos trocavam palavras ásperas. Durante muitos minutos a multidão se perguntava se poderia crer naquilo que estava ouvindo.
O orador pediu silêncio e continuou.
Sugiro, pois, que se forme uma comissão de cidadãos, dentre os mais respeitáveis, que irá investigar aquilo que acabo de narra. É irmos agora à casa deles e comprovar o que aqui lhes digo. Provado isso, deveremos julgar nossos representantes, aqueles que deveriam fazer de nossos dons coisa sagrada, para depô-los e para que outros, mais dignos e menos ambiciosos, ocupem seus lugares, cumprindo o que lhes toca.
Novo murmúrio, logo interrompido pela palavra do chefe da tribo.
Cidadãos, ouvi em silêncio, como todos vós, a acusação que nos acaba de ser feita. Era o que me competia, pois a cada um, como bem sabeis, é dada a liberdade de expressar-se, garantia máxima de nossa comunidade. Mas a todos também é dado o direito de defender-se, quando acusado. É o que faço neste momento.
Fez uma pausa, procurando estabelecer um hiato entre a palavra do outro e seus futuros argumento.

Todos sabem também que nosso povo tem o dom excepcional da cegueira. Graça divina que reiteradamente temos agradecido ao nosso criador. Benesse que nos trouxe a felicidade suprema de não vermos os andrajos de um mendigo, nem o rosto de um ancião, nem o desfazimento de um cadáver, nem o lixo de nossas ruas. Sabemos de sua existência, mas pela graça de nosso deus, não vemos. Não ver o insolúvel é já evitar preocupação inútil. Podemos, assim, olhar para dentro de nós mesmos e aí descobrirmos tudo o que há de bom e de belo em nós mesmos. Descobrirmos lá dentro, no nosso âmago, aquele pedaço de deus que ali existe. Quando existe. Frisou bem a última afirmativa.
As pessoas voltaram-se o rosto, expressando um sorriso que não passou despercebido ao denunciante. Era como se todos sorrissem para ele. Ou rissem dele, não sabia bem.
O chefe continuou.
Qual dentre vós alguma vez sentiu-se mal olhando para dentro de si? Quem dentre vós alguma vez lamentou não ter olhos para ver o lixo, o cadáver, a velhice? Pois bem. Agora aparece no meio de nós alguém que nos diz ter visto. Confessadamente ele provou do fruto proibido, foi castigado por nosso deus e, depois disso, adquiriu o poder de ver. Viu o céu separado das árvores, viu o cão igual ao pássaro. Ele viu, segundo nos diz. Ora, senhores, diante de tal afirmação somente podemos concluir que estamos diante de uma verdade ou diante de uma mentira.
A lógica da conclusão era inarredável e levou o auditório a não reparar na falsidade das premissas. As conseqüências imediatas do sofisma não foram percebidas desse modo pelo denunciante, que tudo acompanhava em respeitoso silêncio, como convinha e era norma.
O orador prosseguiu.
Aceitemos que ele está a falar verdade. Ele realmente viu. Nesse caso, este homem é um maldito, um amaldiçoado por deus, que nos fez todos à sua imagem e semelhança. Se nosso deus não fosse cego, algum de nós teria a salvação eterna? Se ele visse todos os nossos pecados, quem de nós teria a salvação? A cegueira de nosso deus é a nossa esperança, amados irmãos. Como ter fé em um deus que tudo vê e que tudo sabe? Como esconder-se dele? Como amá-lo plenamente se somos imperfeitos e, por definição, temos a impossibilidade de amá-lo tal como ele merece ser amado? Só sua cegueira nos salva! Como é possível, pois, que um homem, feito à imagem e semelhança de nosso deus cego, seja mais do que ele é? Se é verdade que este homem vê, ele é um réprobo, cuja presença entre nós somente poderá significar provocação às iras de nosso bom, porém justo, deus. É um novo lúcifer, que se supõe ser dotado de mais luz do que quem lhe deu à luz e lhe deu a luz!

Saboreou, vaidosamente, o jogo de palavras que, sabia-o muito bem, pouquíssimos ali teriam percebido.
O denunciante percebeu a movimentação das pessoas, que se puseram a formar um círculo de ferro em torno dele. Via-lhes a expressão inamistosa, demonstrando que suas palavras já haviam caído no limbo do esquecimento. As palavras do chefe, contudo, continuavam a martelar os ouvidos da multidão. Ele concluiu o raciocínio de forma fulminante, como quem dá um xeque-mate:
A não ser assim, este homem mentiu. E mentiu no propósito inequívoco de semear a discórdia entre nós, no seio de nossa feliz comunidade, quebrando a serenidade e a paz social de que todos desfrutamos, em nossa santa cegueira. O objetivo desse pecador é a nossa cizânia. Sentenciou, em remate Tertium non datur,

As palmas que ele intimamente esperava, não vieram. Mas eles já haviam feito o julgamento. O círculo de ferro foi-se fechando sobre o denunciante, que jamais pensaria em tentar fugir.
Se este homem é um maldito de deus, ou se este homem é um subversivo, pouco importa. O que é certo e verdadeiro, tão verdade como a cegueira de nosso deus, é que ele não pode mais continuar entre nós.
E mais não disse. O círculo fechou-se de vez. Ali mesmo na ágora o povo executou o maldito, linchando-o. Como se não tivessem pecados, apedrejaram-no até a morte. Depois, seu corpo foi esquartejado. As postas foram deixadas apodrecendo ao sol, para que o cheiro servisse de advertência aos incautos.

Para que não haja dúvidas: este conto saiu em 1982, no livro Cristo Hoje, Editora Loyola (esgotado), o Ensaio sobre a Cegueira, do José Saramago, saiu em 1995, e os fatos envolvendo magistrados capixabas e policiais de barriga verde ocorreram em 2008.

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