03 setembro 2011

Provas de suficiência



“Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho.” (Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção)

O Oscar tem um filho, Tomás. O Tomás tem um filho, João. O João tem um filho, Pedro. O Pedro tem um filho, Antônio. O Antônio tem um filho, Francisco. E o Francisco tem uma dúvida.
De fato, ele sabe dizer qual é a relação parental entre ele e Pedro, que é o pai do seu pai. Daí pra cima, nada! Oscar, por exemplo, avô do seu avô, o que é dele? E Tomás?
Eu disse que ele tem uma dúvida, mas retifico. Ele tem duas dúvidas. Sua namorada é a Maria Aparecida, que só fala em casamento. A dúvida dele: se eles se casarem, ela será sua parente? Se for, qual o grau desse parentesco?
Pensando bem, suas dúvidas são três. Eis a terceira: se a noiva se chamasse Dilma e se ele se casasse com ela, ela seria sua parente ou sua parenta?
É que o Francisco entrou para a faculdade de Direito (quem entra na faculdade é o carteiro, mas ali não assiste os professores, até porque quem assiste os professores é o médico, já que os alunos assistem às aulas dos professores) e está encontrando alguma dificuldade em entender o que alguns professores dizem.
Por exemplo, quando o professor fala em “bem fungível” o Francisco deve incluir aí a sua Cidinha ou não? O professor mostrou a diferença entre coisa útil, coisa necessária e coisa supérflua. A serra elétrica que o Chico tem em casa é coisa necessária, útil ou supérflua?
Embora esteja no primeiro ano, ele trabalha como “fórum boy” no escritório de advocacia de um amigo de seu pai. O tal advogado entrou com uma ação junto à Vara de Família e pediu a concessão antecipada da tutela reclamada, a ser concedida “inaudita altera pars”. Você acha que isso está certo? Pior: o curador de família deu um parecer dizendo que os argumentos da pretensão vêm de encontro à opinião da doutrina. O advogado quer saber se o promotor concordou ou discordou dele. Que lhe parece?
Não bastasse isso, a juíza que recebeu os autos mandou retificar a petição inicial porque está dirigida ao “Exmo. Sr. Juiz de Direito” e ela é uma “Exma. Sra. Juíza de Direito”. Como você faria no futuro para que outra juíza não se abespinhasse com um cabeçalho que ela reputa machista?
Perguntas semelhantes a essas eu costumava apresentar a meus alunos, muitos dos quais ainda viam nas petições do escritório onde trabalhavam coisas como “E.R.M.” e “Nestes termos pede deferimento”, conforme me relatavam no intervalo de aulas. Tem sentido isso?
Já na primeira aula eu dava uma indicação de como seria o curso. Entregava a cada um uma folha de papel com algumas indagações, precedidas de uma observação: “Leia com atenção toda a folha e depois faça o que vem determinado”. Depois disso eu apresentava os itens a serem obedecidos:
1.   Nome:
2.   Matrícula:
3.   Data de nascimento:
4.   Se você for do sexo masculino, assobie a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro
5.   Se você nasceu em outro Estado da Federação, fique de pé e erga o braço direito
6.   Se você tiver filhos, fique de costas para a lousa
7.   Se você trabalha, além de estudar, erga os dois braços
8.   Se você fala uma segunda língua, bata palmas
9.   Se você for viúvo, rasgue a folha
10.       Agora que leu tudo, atenda apenas as primeiras duas determinações
Eu não fazia isso por sadismo, mas para que aprendessem que um advogado, um promotor, um juiz ou mesmo um delegado de polícia somente deve iniciar o seu trabalho depois de ter conhecimento de todos os dados do problema a ser por ele equacionado. Ou passará a mesma vergonha daqueles alunos que, açodadamente, foram atendendo as determinações por mim feitas antes de ler a última.
Além disso, ficava a lição de que, antes de utilizar uma palavra ou uma expressão incomum, especialmente se for em língua estrangeira, o profissional do Direito deve certificar-se do seu exato sentido e de sua correta grafia, até porque há alguns conceitos ou redações vulgares que não correspondem ao conceito ou à redação técnicos, como se dá com a palavra “tataravô”. Quem é seu tataravô?
E chega de fazer perguntas. Agora quero saber das respostas. No fim da próxima semana darei as notas aos alunos que voluntariamente acederam a este desafio. Como diz o Umberto Eco, “que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo o que seu receptor deve compreender. Não terminaria nunca.”
Mãos à obra, pois. 

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