07 junho 2013

Diálogo ao pé do monte


Se é verdade que os sonhos são o meio pelo qual nós conversamos conosco, eu não quero saber de papo comigo. Sujeitinho chato, metido a besta, sempre querendo interpretar isto e mais aquilo. Um caga-regras, enfim. Resultado: quando acordo, tenho uma vaga impressão de que sonhei, meu espírito viajou por aí a fora, mas se esqueceu de fotografar os pontos turísticos. Nem roteiro, nem imagens, nem personagens. Nada me vem à lembrança. Apenas aquela sensação idiota de que carreguei pedra a noite toda, tal o cansaço que sinto depois de, em tese, haver descansado.
Como toda regra, essa teve ontem uma exceção. Acordei hoje tendo a nítida certeza de que, na noite anterior, fiz uma viagem ao Oriente. E que viagem! Lembro-me claramente de estar sentado num camelo, tanto quanto outros turistas e o nosso guia. A certa altura, como é próprio dos sonhos, não havia mais ninguém, além do camelo que eu cavalgava desajeitadamente. Nem o guia. Olhei para um lado, olhei para o outro e tudo o que vi foi aquele deserto árido, como se eu estivesse nos Lençois Maranhenses. Estivesse no emirado do Sarney e, seguindo a noroeste, cedo ou tarde eu chegaria ao Oceano Atlântico. Mas ali? Sem saber o que fazer, exclamei instintivamente “Meu Deus!” Foi a senha para o camelo seguir a galope em direção a nada, o que, para mim, não faria a menor diferença. Chegamos a um local onde havia um pequeno morro. Perto do cume, uma árvore de Natal, com luzinhas piscando. O camelo, com o beiço, apontou-me a árvore e deu um corcoveio, derrubando-me ao solo. Não tendo escolha, subi até o local da tal árvore.
“- Senta-te!” foi o que ouvi. Uma voz tonitruante, que se espalhava pelo vale. Olhei para o camelo e ele, positivamente, não tinha cara de ventríloquo. Ou então seria o melhor ventríloquo que já encontrei na vida.
“- Senta-te!” ecoou a mesma voz. Não tive escolha.
“- Quem sois vós?” indaguei, solene.
“- Sou aquele que chamaste.”
Esse camelo ficou louco. Quem eu chamaria num deserto desses? Com um calor de 40° na sombra, se houvesse sombra, até juízo de camelo pifa, eis minha conclusão. Olho em torno e nos 360° próximos a sombra maior era aquela das luzinhas da árvore, quando apagavam momentaneamente, antes de acender novamente.
“- Para alguém que vive dizendo que é ateu, chamar-me numa hora de perigo é uma contradictio in adjecto. Não concordas?”
 “- Em primeiro lugar, eu nunca disse que sou ateu. Eu sou agnóstico. Ateu, no grego, significa ‘ausência de Deus’ (a+theos) enquanto a palavra agnóstico expressa um juízo suspenso (desconsideração de tudo o que não pode ser provado). Se Deus me deu inteligência foi, certamente, para ser utilizada. Se ele não me convence de que ele existe é, certamente, porque ele não quer provar que ele existe. Logo, ser agnóstico é respeitar a vontade de Deus. Em segundo lugar, eu não chamei ninguém. Utilizei de uma reles interjeição, que, como sabeis, não tem sentido algum, servindo apenas para expressar admiração, alegria, aplauso, desejo, despedida, dor, medo, susto e coisas assim. ‘Puta merda!’ não quer dizer absolutamente nada. O mesmo se diga de outras expressões, como ‘Vixe!’, ‘Bah!’, ‘Taquipariu!’ É um mero desabafo diante de um risco que se correu. Ou de uma surpresa. Ou sei lá de que mais. Só alguém muito egocentrado pensaria que estamos falando nele quando estamos simplesmente fazendo um natural desabafo.”
“- Quando eu dei ao ser humano inteligência sabia que com ela viria a arrogância. Fé não tem nada a ver com inteligência. Fé é uma entrega cega. A inteligência, que só pus no ser humano, tem objetivos bastante limitados: compreender aquilo que pode ser entendido. Acho que até deixei isso escrito naquele livro que lhes deixei e que vocês costumam colocar como enfeite na sala de vistas. Entra visita e sai visita e aquela fitinha vermelha está sempre na página do salmo 23. Sinal claro de que o livro jamais é lido.”
“- Quando os astrônomos afirmam que Urano tem um sétimo satélite chamado Ilíada ou qualquer coisa assim, eles exibem sons e fotos que demonstram a existência de Urano e do tal satélite. Aí eu creio.”
“- O sol te afetou o cérebro, meu jovem. Você vive com a Playboy na mão, babando feito criança diante daquelas mulheres maravilhosas que aparecem ali. Você já viu alguma delas pessoalmente? Com certeza viu, mas não reconheceu, pois eu não uso photoshop para aperfeiçoar os meus trabalhos. O que eu fiz está feito. Vocês é que têm essa mania de querer combater os efeitos do tempo. Que sabem vocês sobre o tempo? Vivem falando que ontem deveriam ter feito isto, amanhã deverão fazer aquilo. O ontem e o amanhã são irmãos gêmeos que só existem na fantasia humana. Em realidade, eles não existem. A cada dia bastam suas tribulações. Acho que também escrevi isso.”
“- Se era para nós não entendermos tudo, para que vós nos destes a inteligência?”
“- Para vocês compreenderem que não é possível conhecer tudo. Se tua inteligência não te mostra isso, a culpa não é minha. Aliás, se a memória não me falha, Urano tem 20 satélites e nenhum deles se chama Ilíada: Cordélia, Ofélia, Bianca, Créssida, Desdêmona, Julieta, Pórcia, Rosalinda, Belinda, Puck, Miranda, Ariel, Umbriel, Titânia, Oberon, Calibã, Estêvão, Sicorax, Próspero e Setebos. Acho melhor você dirigir a sua fé para algo mais consistente. Permita-me uma pergunta: qual o benefício advindo para sua vida depois que você passou a acreditar que Urano tem um satélite chamado Ilíada? Qual será tua reação quando confirmar que não há em Urano nenhum satélite chamado Ilíada nem Odisséia?”
“- Lá vem o senhor com essa visão utilitária da fé. Creio para compreender.”
“- Quem disse isso foi o bispo de Hipona, que era tão humano como tu.”
“-E a Igreja não vive dizendo faça isto para merecer aquilo?”
“-Quem inventou a Igreja foram vocês, não fui eu. A vida é uma sucessão de encruzilhadas. Eu lhes dei livre arbítrio e inteligência para escolherem o caminho que acham melhor. Em lugar disso, diante da menor dificuldade vocês se prostram de joelho e pedem um GPS. Que eu ajude as tartarugas e os colibris tudo bem, que são praticamente indefesos. Mas uns cavalões desses que se acham os reis da criação? Deixem-me em paz que eu tenho Nn sistemas solares para cuidar. Faça os cálculos. Ou vocês acham que eu só existo nesse planetinha de, como direi?, insignificante?”
“- Quando nos criastes vós sabíeis aonde iríamos chegar”, disse eu, todo solene.
“- Era uma possibilidade e eu preferi correr esse risco. Mas seus colegas astrofísicos já estão vendo que minha atenção atual está centrada em outros sistemas solares, onde eles dizem que pode haver vida inteligente. Algo que mereça ser chamado vida inteligente. Por que não?”
“- E que vai ser de nós, senhor?” indaguei, de joelhos.
“- O que vocês quiserem que seja” respondeu ele, dando uma gargalhada que se espalhou pelo vale, sacudindo tudo à nossa volta.
 Acordei deitado no chão, embrulhado no tapete. Que nem era persa, até porque a Pérsia já era.

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