14 junho 2013

O Mito da Ressocialização


 “Para o Presidente Ayres Brito as decisões do Supremo na ação penal 470 sinalizam uma virada de página na direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política.”

 Também sou daqueles que entendem que o famigerado processo 470 do STF poderá vir a ser um divisor de águas em nossa sociedade. Não apenas no campo da política. Essa dívida nós teremos, por menos que queiramos, com os aloprados que levaram às últimas consequências a nacional crença de que “é preciso levar vantagem em tudo”, imortalizada em uma peça publicitária inesquecível (clique aqui). Necessário é, no entanto, que nos debrucemos criticamente sobre o “processo do mensalão”, não só no seu nascedouro, mas no seu desenvolvimento, em suas conclusões e nas lições várias que pode trazer-nos, desde que estejamos dispostos a recebê-las.
Em primeiro lugar, como tem dito e repetido o Ministro Marco Aurélio, esse autêntico grilo falante que, de longa data, trombeteia o antigo mote de seu colega Mário Guimarães, no sentido de que “o voto vencido de ontem pode vir a ser a jurisprudência de amanhã”, a definição da competência de uma Suprema Corte como instância única para o julgamento criminal de alguns réus, sob o irônico epíteto de “foro privilegiado”, faria rir uma criança, se tivesse ela noção mínima do princípio da razoabilidade. “Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip), isto é, de se proceder à censura sobre a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit) do ato legislativo”, segundo nos diz o Ministro Gilmar Mendes.
Em segundo lugar, a função de decidir tem peculiaridades diferentes das que tem a função de rever decisões. Imagine-se a cena: juízes da Suprema Corte norte-americana de lápis na mão a fazer contas de chegar quando se cuida de apenar os condenados. Coisa digna de filme de Woody Allen.
Em terceiro lugar, os mesmos juízes, ao baterem boca se os réus devem ou não devem entregar seus passaportes, parecem desconhecer a jurisprudência da Casa no sentido de que, presumida a inocência, a tentativa de fuga do réu não se pode presumir. Há de o decreto de prisão preventiva ou qualquer outro ato de restrição total ou parcial da liberdade especificar os motivos pelos quais tal restrição é decretada, tanto mais necessária quando se cuida de mais de uma vintena de réus, cada um com suas características individuais.
Por fim, digno de recordar que a linguagem compõem-se de frases e as frases de palavras, como diria o imortal personagem de Eça. Assim sendo, não é de estranhar que muitas palavras de nosso uso comum sejam fruto do preconceito, como “urbanidade”, que supõe, pré-conceituosamente, que as pessoas da cidade sejam mais educadas do que as pessoas interioranas. A palavra “judiar”, para muita gente, refere-se ao que os judeus, genericamente considerados, fizeram a Jesus. Caldas Aulete, no entanto, desmascara tal versão: ela significa “tratar como antigamente se tratavam os judeus”. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, editado em Lisboa, supõe que o final “iar” sugere influência da língua espanhola, pois a palavra se refere às condições em que viviam os judeus, confinados em cidades cristãs da Europa, até porque, segundo Antonio Houaiss, ela teria surgido no século XV. “Por causa das condições adversas em que viviam e dos maus-tratos a que eram submetidos” os judeus, diz Márcio Bueno, em A Origem Curiosa das Palavras, “a palavra judiaria passou a significar também perversidade, ato de maltratar, de impor sofrimento, surgindo daí o sinônimo judiação”.
Nossos dicionários são lacônicos ao definir ressocialização, preferindo o óbvio: “tornar a socializar-se”. Mas, que teria levado alguém a deixar de ser uma pessoa “socializada”? Se, como quer a Sociologia, a socialização é um processo de integração dos indivíduos de um grupo social, tanto quanto a sociabilidade compreende as maneiras de quem vive em sociedade, para citarmos Aulete, quem, a não ser Tarzan e Robinson Cruzoé, necessitariam de um processo intensivo de readaptação à vida social? Trata-se, já se vê, da presença do preconceito: estamos falando de pessoas que, tendo nascido na periferia (para não falarmos “nascidos em favela”), habituados a “maneiras” diversas das nossas e que agora, vindos para a cidade grande, estão despreparados para aí viver, necessitam de passar algum tempo enjaulados para aprender como se vive fora das grades. Supuseram os criadores da infeliz palavra que nós, os citadinos, nós, os de curso superior, nós, os políticos, não precisamos ir para a cadeia porque, socializados que somos, não há falar em ressocialização diante das infrações legais que cometemos. Não fosse isso assim, que curso de ressocialização daríamos a um político infrator? Talvez mostrar-lhe o conteúdo das leis penais que ele ajudou a criar. E que curso de ressocialização daríamos a um advogado infrator? A um médico? A um padre? A um juiz?
Quando pessoas honestas e bem-intencionadas repetem, sem maior cuidado, a velha arenga de ser a pena instrumento dessa tal “ressocialização” e, ao mesmo tempo, reconhecem que os presídios do Brasil são uma vergonha, como, de fato, são, eu indago: onde estão os promotores de justiça e os juízes criminais que, por lei, têm o dever de visitar periodicamente tais estabelecimentos? Onde estão os desembargadores que, devendo fiscalizar os juízes, não o fazem? Como haveremos nós outros de ressocializar esses ressocializadores omissos?
Umberto Eco, um dos grandes pensadores de nosso tempo, nasceu em um lar católico. Como tantos jovens de seu tempo, educou-se sob o manto do fascismo. “Em 1942, com a idade de dez anos”, diz ele, “ganhei o primeiro prêmio Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos – o que vale dizer para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema ‘Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?’ Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto”, ironiza ele. Caindo Mussolini e desacreditando da Igreja católica, especialmente por sua passividade diante da ditadura, buscou “ressocializar-se” por outros meios, como registra em inúmeras obras, uma das quais Cinco Escritos Morais, de onde se extraiu o texto acima. No oportuno Em que Creem os que não Creem? podemos ler a troca de correspondência entre ele e o cardeal Carlo Maria Martini, Arcebispo de Milão, cada um narrando os fundamentos de sua “sociabilidade”. Ali, ele afirma: “Devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e pensar. Se nossos semelhantes tivessem respeitado esses ‘direitos do corpo’, não teríamos tido o Massacre dos Inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu, a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas minas, os estupros na Bósnia”. É claro que o rol não pretendeu esgotar os exemplos possíveis. E indaga, como se cuidasse do tema aqui trazido: “Mas, como é que , mesmo elaborando de imediato o seu repertório instintivo de noções universais, a besta que coloquei em cena poderia chegar a compreender que deseja fazer certas coisas e que não deseja que lhe façam outras, e também que não deveria fazer aos outros o que não quer que façam a si mesmo?”
O nosso sistema prisional premia com a chamada “progressão no regime de cumprimento da pena” não o sincero arrependimento do pecador, como pode sugerir a palavra “penitenciária”, mas o mero e cínico afeiçoamento às regras da prisão. Quem dirige essas prisões? Quais as regras ali vigentes?
O que nos permite concluir que “ressocializar-se” não é, entre nós, realizar uma metanoia (“mudança de atitude por força da conversão”, como dizem os dicionários teológicos), a partir da descoberta dos valores alheios (“A dimensão ética começa quando entra em cena o outro”, resume Umberto Eco), mas aprender a realizar a arte da dissimulação.
Sendo isso assim, concluamos, pragmaticamente, que os já cínicos não necessitam de pena.
 

3 comentários:

  1. ... habeas corpus pra eles, os mensaleiros, os corruptos, ... o imortal Jayme C. Braum, acertava, ... 'eu duvido que alguém ponha uma idéia na cadeia', ... o que esse julgamento da Ação Penal 470, deve representar para as presentes e futuras gerações, é o aprisionamento ideológico, é a censura ao comportamento 'social demais', desses corruptos, ... e quanto ao cumprimento da pena e sua finalidade, ... já dizia o Marques de Beccaria, ... 'a finalidade da pena deve representar um pensar constante, acerca da sua extinção', ... me corrija Mano Meira, ... você que é versado nesses temas 'bruto', ... Grande aula Mestre Adauto, ... vou incluir um dito do Eco, numa peça recursal, que estou elaborando nesse momento, ... fui, ... Cleanto Farina Weidlich

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  2. Prezada Dalila, ... passei esses últimos calendários com a idéia acampada na busca de inspiração, para homenagear o nosso querido Mestre e amigo Adauto, .. de um livro ganho de presente do mano Silvano – outro fã do Mestre – das leituras na madrugada desse outono – que em nossa geografia, prenuncia a chegada do Vento Minuano, esse mesmo que ganhou o mundo, desde a nossa vizinha Cruz Alta, pela pena do Érico, ... para quem cultivava orquídeas na sacada, para quem dava forma e beleza tanto a palavra escrita, como aos materiais que utilizava em suas esculturas, quadros, desenhos, gravuras, fotogravuras, para quem lutou e não dobrou a espinha em abandono aos ideais, para quem amou a vida e ao próximo, para quem sabia tudo do pouco e pouco do tudo, era portanto, especialista e generalista, mas acima de tudo, em todos os seus pitacos e manifestação de idéias e ideais, respeitava as diferenças, mas com uma tal capacidade de convencer e vencer, que terminava sempre indo além, muito além, onde muito poucos alcançavam e compreendiam – em primeiro eu – mas guardava dentro do seu coração, a coragem, o voluntarismo, a boa vontade, a retidão de conduta e a firmeza de caráter, ... consegui, até onde alcançam as minhas chinelas – como ele mesmo gostava de expressar – quando eu provocava com os meios devaneios novidadeiros, ... do livro da LPM, por Luiz Antonio de Assis Brasil, em Figura na Sombra, 2ª edição, p. 77/78, ...
    Capitulo XXI – olha a sincronicidade com o nosso século –



    ..’ Anos depois, em Montevidéu, Aimé Bonpland respondeu a um russo:



    “ A selva da América do Sul?



    A selva da minha viagem com Alexander Von Humboldt?



    Como posso descrevê-la, se seus ouvidos só entendem palavras européias?



    É mais fácil imaginar a selva do que descrevê-la. Tudo o que o senhor pensa a respeito do mundo, tudo o que sabe de ciência e da arte, de todos os tratados filosóficos, do nome das coisas, tudo isso o senhor deve esquecer, na selva da América do Sul. Lá não há começo, não há fim. Em meio à selva, não há passado, não há futuro. Há exalações mornas. É o hálito da selva. Lá o ar é quente, espesso e viscoso. A umidade nos faz sangrar água por todos os poros. As plantas no chão, à altura das pernas, da cintura, do peito, da cabeça e sobre ela, as plantas são o abraço de um ventre impiedoso. Há as árvores desconhecidas. Imagine um choupo, triplique a altura, dobre o tamanho dos ramos. Ponha lianas penduradas nesses ramos. Faça-as balançar com se fossem serpentes. Imagine mil choupos enormes com seus ramos e lianas e serpentes e multiplique-os por um milhão. É a selva. Não tem nada em comum com as planícies do pampa.

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  3. É impossível descrever a selva da América do Sul.
    Escutamos estalos repentinos, um crepitar. São as plantas vencendo umas as outras, na busca de um espaço à luz. Os gritos dos pássaros prolongam-se em suas elegias. Esses gritos vêm de cima, da altíssima abóbada das árvores e reverberam entre as ramagens. Animais do tamanho de anões vivem ali, e espreitam-nos. Se conseguimos vencer nosso caminho à custa do desbaste da floresta, esses animais, tímidos e ferozes, agarrando-se aos ramos, executam arabescos nas alturas e chegam sempre antes de nós. Olhamos para cima e lá estão eles, com seus olhos. No chão incerto há um rumor de vermes, como se devorassem às pressas corpos insepultos.



    “ Na selva sempre há odores. De terra parada, de plantas decompostas, de animais mortos. Vaga, no ar, um mormaço pútrido. Não vemos o céu, não vemos as nuvens. Escutamos os trovões e percebemos os raios que iluminam as copas das árvores. A chuva nos alcança onde estivermos. E a chuva desce pelos troncos e escorre sobre as folhas hirtas como couro. À noite, tudo muda. A selva, então, é escura.



    “ À noite, nada mais vemos, mas tudo escutamos. Uma fogueira é necessária, não para iluminar, mas para estabelecer a divisa entre os homens e a selva.
    Há animais cujas vozes são escutadas apenas à noite. São agouros. São forças dos primórdios da Criação. É impossível descrever a selva da América do Sul, meu senhor. Tente imaginá-la” E pá!



    Como ele mesmo com licença dos ‘descobridores’, de além do Bojador, gostava de encerrar, ... o nosso Mestre, quando for estudado o seu pensamento, que é um desafio para os Mestres, Doutores e Pós-doutores, dos homens das altas culturas e letras, das gerações que virão, ... após muita liça e pesquisa científica, tenho que será alvo dos mesmos coloridos, sons, grunhidos e mistérios iguais aos da selva da América do Sul, somada à Pampa de Hernandez, com suas lebres, lobos e jaraus, que inspiram os poetas e chamameceiros que cantam nessas fronteiras, ... Feliz tropeada, amigo!
    Cleanto, do catecúmeno de todas as horas, ...

    De: Dalila Suannes [mailto:dalila.suannes@gmail.com] Enviada em: quinta-feira, 27 de março de 2014 12:01
    Para: cearuchofm@gmail.com; cleantofw@terra.com.br
    Assunto: Triste noticia



    O Adauto Suannes faleceu nesta manhã.



    Dalila Suannes Pucci

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