16 agosto 2013

Entre o temor e o dever

 

“'Quem não deve, não teme', diz Joaquim Barbosa sobre apartamento adquirido por ele em Miami” (Dos jornais)

 “São deveres dos magistrados... manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.” (LOMAN, artigo 35, VIII)

 

Segundo se tem noticiado e não foi negado pelo envolvido, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, comprou, a vista, um apartamento em Miami, nos EUA, em maio do ano passado, usando uma empresa que ele abriu para obter benefícios fiscais no futuro, por nome Assas JB Corporation. Não constou do noticiário qual a natureza da empresa (civil ou comercial), quem são seus sócios componentes nem quais as atividades a que se propõe. O valor do imóvel é estimado no mercado entre R$ 546 mil e R$ 1 milhão, valor que, segundo o Ministro, teria saído inteiramente de seu bolso.

 Entretanto, segundo se diz, o procedimento é perfeitamente legal e costuma ser adotado por outros brasileiros que investem em Miami. Se, em tais casos, o adquirente ou seus herdeiros quiserem vender o imóvel, o custo será maior do que se ele tivesse registrado o apartamento em seu nome. Empresas pagam 35% sobre os eventuais lucros. Pessoas físicas recolhem 15%. De acordo com a legislação local, porém, o Estado da Flórida poderia ficar com até 48% do valor do imóvel na hora da transferência para os herdeiros se ele fosse registrado em nome do cidadão Joaquim Benedito Barbosa Gomes. Como o apartamento foi adquirido por uma pessoa jurídica, em tal caso não haveria cobrança de imposto, pois as ações da empresa seriam transferidas aos herdeiros sem alteração quanto ao proprietário do imóvel, a tal Assas JB Corporation.

Tal fato presta-se a algumas considerações, mesmo porque nem sempre aquilo que é legal é também moral, como sabemos todos.

 Em primeiro lugar, os atos humanos são, em geral, informados de uma causa, que, quase sempre, diz com sua finalidade. Ao constituírem uma empresa, seja civil, seja comercial, os sócios têm em mente uma atividade duradoura, que compreende a prática de atos reiterados, que envolvem bens e/ou serviços. Uma empresa inativa é um autêntico contrassenso.

Bem por isso, afirmou o E. Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os ED no REsp 1214382/RS (2010/0181061-6), relatado pelo Min. Humberto Martins e julgado em 07 de Dezembro de 2010, que “a sanção aplicada à contribuinte – cancelamento do CNPJ – deu-se
em decorrência da conclusão de que a empresa contribuinte não
existia, de fato, após avaliação de toda a documentação apresentada. Legalidade da sanção, com amparo no disposto no art° 81 da Lei n° 9.430/96, regulado pela IN 200/2000 da SRF, porquanto visa coibir as chamadas empresas 'fantasmas' ou 'laranjas', fiscalizando a atuação de estabelecimentos que agem por conta própria e por ordem de terceiros, possibilitando a real identificação das empresas que exercem suas atividades dentro dos moldes da legalidade."

Por outro lado, segundo se diz no noticiário, inúmeros brasileiros costumam aplicar seus recursos no Exterior, onde as vantagens fiscais são convidativas. Isso implica, em primeiro lugar, a remessa de numerário ao Exterior, o que exige um procedimento específico que, aliás, nem todos os brasileiros observam, como se verificou, por exemplo, no famoso Processo 470, dito “do mensalão”.

 No julgamento do Habeas Corpus n° 243889 (2012/0109202-3), relator o Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11 de Junho de 2013, o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de afirmar a necessidade de examinarem-se cuidadosamente as circunstâncias que envolvem a remessa de numerário para o Exterior, pois, não poucas vezes “o modus operandi da suposta organização consiste na criação de empresas ‘de fachada’ ou ‘fantasma’, em nome de sócios ‘laranja’, com pouco ou nenhum patrimônio, que teriam a finalidade de atrair os ônus fiscais da cadeia produtiva, de modo que as empresas em que realmente estão congregados os fatores de produção e seus controladores ficassem imunes à tributação, tendo sido apurado, inclusive pelo COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras, movimentação financeira expressiva, oriunda de empresas que não possuiriam capacidade econômica para tanto”

Naquele caso, a paciente figurava como investigada, tendo em vista ser ex-esposa do "cabeça" da organização criminosa, aparecendo como sócia e procuradora de várias empresas pertencentes, em tese, à organização, com inúmeros vínculos demonstrativos de sua intensa participação nas atividades criminosas e aquisição de vantagens a partir dessas atividades. Ao denegar o Habeas Corpus n° 88590/SP (2007/0186473-2), relatado pela Min. Laurita Vaz e julgado em 28 de Março de 2008, afirmou o mesmo tribunal que “uma coisa é desconstituir o tipo penal quando há discussão administrativa acerca da própria existência do débito fiscal ou do quantum devido; outra, bem diferente, é a configuração, em tese que seja, de crime contra a ordem tributária em que é imputada ao agente a utilização de esquema fraudulento, como, por exemplo, a falsificação de documentos, utilização de ‘empresas fantasmas’ ou de ‘laranjas’ em operações espúrias, tudo com o claro e primordial intento de lesar o Fisco.”

No julgamento do Habeas Corpus n° 162957/MG (2010/0029590-2), relatado pelo Min. Og Fernandes e julgado em 04 de Dezembro de 2012, teve o mesmo Tribunal a oportunidade de discorrer sobre o processo de ‘blindagem patrimonial’, que consiste na colocação de empresas em nome de pessoas físicas de fachada (‘laranjas’) e pessoas jurídicas de fachada (off-shores), com o objetivo de "blindar" os seus respectivos patrimônios, protegendo-os de eventual execução fiscal.

Desnecessário enfatizar que ninguém jamais sugeriu fosse esse o caso da conduta do Ministro Joaquim Barbosa. Entretanto, há a considerar o que vem contido no artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que diz ser vedado ao magistrado exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista, bem como exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe, e sem remuneração.

Isso sugere algumas indagações: a) qual a natureza da empresa Assas JB Corporation?; b) quem são seus sócios componentes?; c) como se constituiu seu capital social? d) quem é que a dirige?; e) quais os atos que já praticou desde que instituída?

Digno de considerar ainda que, segundo o contido no artigo 299 do Código Penal, constitui falsidade ideológica “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.

A aquisição de um imóvel é, sem a menor dúvida, fato juridicamente relevante, quando mais não seja porque caracteriza fato gerador de tributo. Constituir uma empresa e, para permitir sua existência, destinar-lhe numerário, é ato natural e corriqueiro, respondendo, a partir daí, pelos encargos fiscais dela ela mesma, pois societas distat a singulis. Se – estamos falando em tese – pessoas físicas reúnem seus recursos e constituem uma empresa com a finalidade única de alterar, sem base na realidade, o fato gerador de tributo, beneficiando-se elas e/ou seus herdeiros disso, estaremos, de fato, diante de um procedimento que conta com o patrocínio da Moral e do Direito? Essa empresa tem existência real?

Como ressaltou o E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 130 MC/DF, sendo relator o Min. Ayres Britto, “princípio constitucional de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica, a Democracia avulta como síntese dos fundamentos da República Federativa brasileira. Democracia que, segundo a Constituição Federal, se apoia em dois dos mais vistosos pilares: a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade; b) o da transparência ou visibilidade do Poder, seja ele político, seja econômico, seja religioso.”

 Esperemos que o Presidente do E. Supremo Tribunal Federal, homem extremamente severo no que diz com o comportamento alheio, preste, em nome da transparência ali referida, os esclarecimentos que a nossa sociedade merece receber, independentemente de qualquer providência investigatória, que se faria necessária em outras circunstâncias.


 







 


 





 

 

 


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