09 agosto 2013

O Bilhete


Toda cidade tem seu maluquinho, alguém que serve de diversão para os sádicos, que gostam de expô-lo nas situações mais ridículas. Vemo-los equilibrando-se em sapatos de salto alto, ou com uma peruca ruiva, colaborando de boa fé para as  maldades alheias. E sempre sorrindo.
Nas grandes cidades, como São Paulo, certamente cada bairro tem o seu. Ou mais de um. Quase sempre granjeiam algum tipo de simpatia, mesmo porque são, no geral, inofensivos.
Convivi com um deles. Seu nome era Burzeguim. Quem lhe lançou o apelido? Quando? Ninguém sabia. O que todos viam era aquele homem, com a idade indefinida dos mendigos, circulando permanentemente pelas ruas do bairro, a puxar, para cima e para baixo, um carrinho de feira repleto de pacotes de tamanhos os mais variados, provocando a curiosidade de tantos. Que haveria ali? Jamais alguém conseguiu saber, pois ele desconversava quando indagado a respeito. Seus andrajos eram sempre os mesmos, embora nas noites mais frias alguma alma caridosa lhe doasse um casaco que, mesmo sendo usado, destacava-se em face da sujeira geral da roupa que cobria. Por vezes um par de tênis aparecia em seus pés e ali ficaria eternamente. Cabelos e barba crescidos completavam aquela figura bizarra, que, ao que parece, jamais saiu do mesmo bairro, circulando pelas mesmas ruas, como se temesse ir muito longe, sem jamais ter tomado um banho. Dormia na calçada de alguma casa comercial, aproveitando o espaço que, durante o dia, era ocupado pelos veículos dos fregueses, coberto com um velhíssimo cobertor, que já merecia aposentadoria.
Seu café da manhã era servido pelo garçom de um bar, que, por motivos óbvios, trazia-lhe a refeição aqui fora. Por outro lado, um copo plástico de refrigerante acompanhava sempre seu almoço, certamente doação de algum dos bares da região, aproveitando a inevitável sobra. Esse era o Burzeguim.
Cheguei a puxar conversa com ele, mas tudo o que consegui saber é que ele havia saído de casa por causa “de um desgosto”, há tanto tempo que ele já não sabia ou não queria precisar a data nem o fato. Falou-me de seus planos mirabolantes, como telefonar ao prefeito para reclamar dos buracos na calçada e para fazer-lhe algumas sugestões, por sinal bem mais sensatas do que as de muitos prefeitos.
Como tantos outros mendigos, recolhia tocos de cigarro, que fumava quando conseguia encontrar quem lhos acendesse. Além deles, recolhia qualquer objeto que chamasse sua atenção, talvez para incluí-los nos incontáveis pacotes que arrastava de um lado para outro em seu carrinho, coisa aí de um Sísifo, aquela criatura mitológica condenada a repetir eternamente a mesma tarefa: empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, quando estava prestes a atingir o almejado topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, exigindo que ele renovasse seus esforços. Assim era com o Burzedguim.
Deu-se então que ele, nesse comportamento compulsivo, encontrou um bilhete de loteria, que, segundo a lenda, referia-se a uma data futura. Ou seja, alguém o perdera antes mesmo do dia do sorteio. Ele mostrou o objeto a seu amigo garçom, que se admirou do valor do prêmio prometido, algo capaz de acertar a vida de qualquer pessoa, imagine-se a de um garçom. Para não falar da de um mendigo. Solicitamente, o garçom sugeriu ao Burzeguim que deixasse com ele o bilhete, que no fim de semana conferiria se ele foi ou não premiado e lhe informaria. O mendigo, sem dizer palavra, recolheu o bilhete, dobrou-o várias vezes, colocou-o num dos bolsos da roupa e afastou-se sem fazer qualquer comentário, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Os dias seguiram sua rotina, o Burzeguim fazendo suas caminhadas costumeiras e chegou o domingo. Ao servir o café da manhã ao mendigo, o garçom mostrou-lhe um pedaço de papel onde anotara os números premiados no sorteio da véspera. O outro caçou o bilhete nos bolsos e entregou-o ao amigo, que comparou os dois papéis, sem fazer qualquer comentário. O mendigo nada perguntou. Limitou-se a recolher o bilhete, como fizera anteriormente, dobrou-o e o guardou nalgum canto daqueles andrajos imundos.
Segundo se diz, esse bilhete jamais saiu do bolso dele. Muitos anos depois, o Burzeguim congelou em uma noite de inverno particularmente severo, tornando-se necessário revistar seus pertences em busca de conhecer a identidade do falecido e providenciar seu enterro. Lá estava, no meio de tanta inutilidade, o tal bilhete de loteria, que certamente foi com ele para a cova.

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