04 maio 2010

Ele

“Criança tem cada uma!” (Pedro Block)

Quando falei nele a primeira vez, os despeitados de plantão torceram o nariz, baseando-se na experiência que tiveram ou têm em casa. Outros, mais atrevidos, me chamaram de “avô babão”, o que, na verdade, não chega a ser uma ofensa, muito pelo contrário. O tempo passou, ele foi crescendo e sua biografia sendo composta.

Em seus 3 anos de idade, já tem seu computador, com o qual se exibe a todas as visitas, especialmente quando a voz misteriosa, saída do fundo daquela caixa azul (“cor-de-rosa é pra menina, fofó” esclareceu ele, precocemente preconceituoso, quando levado pela avó paterna à loja onde escolheria tal presente) bate palmas e diz “muito bem! Você acertou a resposta”), tem sua biblioteca (que certamente tem mais livros do que a da candidata ex pectore, que é levada pra baixo e pra cima, tal como, aliás, faz o Felipe com algum de seus bonecos de pano, mais simpáticos do que ela) com vários volumes, cujo conteúdo ele esclarece para quem se dispuser a ouvi-lo, repondo-o depois no lugar devido, só faltando dizer que tem noções de biblioteconomia e ubicações.

Dia desses, quando a avó materna exibiu-lhe uma cesta com belas frutas que acabara de trazer-lhe de Monte Alegre, onde, com o Ivã, é vizinha de meu preclaro amigo Azevedo Franceschini, ele não teve dúvidas: tirou-as todas e as recolocou de volta à cesta, uma a uma, contando-as, para espanto da avó: one, two, three etc. e tal, twenty. Nada de mais. Hoje em dia, qualquer criança de 3 anos fala inglês, como sabemos. A questão é a pronúncia britânica que ele empresta a seu discurso.

O pai é sampaulino roxo e, como todo pai que se preza, quer transmitir ao filho os valores em que acredita, mesmo os meramente futebolísticos. Fomos outro dia a um restaurante e, ao saber que o garçom tinha o mesmo defeito do pai do Felipe, provoquei o garoto: “Cante o hino do teu time para o homem ouvir”. O pobre do garçom caiu de joelhos quando ouviu aquele esboço de gente sapecar um

“Salve o tricolor paulista,
amado clube brasileiro,
tu és forte, tu és grande,
dentre os grandes o primeiro.”

Como tudo tem seu reverso, deu-se que o pai, que uma vez por semana costuma fingir que ainda tem pernas e fôlego para jogar futebol com os amigos, explicou longamente os motivos pelos quais não poderia levar o filho ao clube àquela hora. Argumento de cá, contra-argumento de lá até que o petiz aceitou o veto à sua saída de casa a desoras. Despediu-se, com ar de superioridade, do José Francisco e saiu, em direção ao quarto, cantarolando:

“Salve o Corinthians,

O campeão dos campeões.

Eternamente ...”

Quando tem fome, simplesmente abre o armário ou a geladeira e faz sua própria refeição. Quando não, orienta a avó: “é só ponhar água naquele copo grande, três colheres de leite em pó, chacoalhar bem e está pronta minha mamadeira”. O ponhar é por conta da Neide, com quem ele aprendeu que o tanque do apartamento tem o apelido de açude.

Tem já suas noções de higiene. A mãe tomava regrigerante num copo e notou os olhos do guri fixados no copo. Esticou o braço em direção a ele, indagando: “Quer um gole?” E ele: “Quero, mas num copo limpo.” Ele deve ter lido na Enciclopédia Britânica os riscos de contaminação pela saliva. Sobre o mesmo tema: precisando fazer xixi, pediu a alguém que lhe abrisse a porta do banheiro, sendo atendido. A pessoa, em natural complemento, pretendeu auxiliá-lo quanto ao mais. Foi dispensada. “Pode deixar que eu xei fazer”. Levantou a tampa do vaso sanitário, baixou o shortinho, depois a cueca com a estampa do Batman, direcionou devidamente o pênis, exerceu o prazeroso ato da micção, deu as três balançadinhas finais, subiu a cueca, depois o short e saiu do banheiro. A tal pessoa indagou: “Mas você não vai lavar as mãozinhas?” E ele, sem perturbar-se: “Por que? Meu pintinho está limpo.”

Esse é o Felipe, racional a mais não poder.

A avó contava-lhe a hostória de um rei, que morava num castelo, que ficava no alto de uma montanha, de onde ele saía montado num cavalo alado, o Pégaso. E ele, contestando a fábula: “Mas cavalo não voa, fofó. Quem voa é paxarinho!”

Quer vê-lo perder o eterno bom humor? Interrompa seu sono. A Neide, que cuida dele desde que nasceu, cometeu essa imprudência dia desses. Ainda sonolento, estalou um tapa de protesto no rosto da moça, que, fazendo cara de muchocho, ameaçou renunciar ao cargo. “Se você continuar a me tratar assim, vou cuidar do Mateo, que não faz essas coisas.” Ele, sem demonstrar o menor abalo com a ameaça, definiu as coisas, referindo-se ao primo, de míseros ano e meio de idade, em termos claros: “O Mateo é bebê, Neide. Ele ainda não anda e gomita quando toma mamadeira.” A Neide, espantada, para não perder a autoridade: “Então me prometa que não me baterá mais.” E ele, sugerindo o que será o futuro argumentador dos foruns paulistas: “Xó xe voxê prometer não me acordar mais assim.”


Um comentário: